Os Ruídos da Alma e seus Diálogos Possíveis
por Mateus Machado
O poeta e crítico literário Fabiano Fernandes Garcez surge no panorama da poesia do novo século, como uma voz prometeica. Professor de língua portuguesa em um país e época onde o papel do Mestre tornou-se objeto de descaso por parte dos governantes; o que acarreta dentre outras coisas, um processo de fragmentação e transvalorização social que envolve principalmente pais e alunos.
O poeta já nasce condenado à marginalidade e ao descaso. Em parte, porque a consciência burguesa (não necessariamente o burguês, enquanto personagem, mas a consciência materialista/imediatista dominante) não consegue assimilar a Poesia como alimento para o espírito ou ainda como expressão do espírito humano.
Fabiano Fernandes Garcez talvez por não ter ainda assumido a Poesia como Poder Pessoal, fogo, ainda que tenha sido roubado dos deuses ou como bem colocou Henry Miller; que o poeta que já não mais acredita no caráter divino de sua missão, inaugura sua obra com o livro Poesia se é que há (Editora Scortecci, 2008). E o poema de abertura, José Fica Quieto, independente de sua estilística, é muito claro em sua mensagem; o homem moderno é impotente em seu meio porque sabe, ainda que de forma inconsciente, que seu mundo está doente. E diante de um mundo doente pela própria linguagem, o silêncio talvez seja o melhor antídoto. Quando a morte não é a via de escape o José pode chegar ao Fim do Dia, vitorioso, “mas com as marcas de quem mais apanhou”. E com humor, expõe verdades, como no poema Formas Geométricas, que diz que viver um “triângulo amoroso” ou deixar de lado o controle remoto porque diante do vazio da TV é “Melhor ler um livro!”.
E ainda resta o questionamento no poema Se Jesus Voltasse Hoje, de cunho social. Embora à primeira vista pareça se tratar da volta de um Jesus Salvador, diante do cenário apocalíptico do mundo, penso que o poeta está querendo nos dizer que esse Jesus, o avatar ou Homem/Deus arquetípico, está presente em cada ser humano. É a figura de um Jesus social, holístico, em seu ecumenismo, para se evitar qualquer condenação.
Penso que o poeta Fabiano Fernandes Garcez, já no primeiro livro, busca não apenas a sua própria linguagem poética; trabalho que requer tempo, labor que requer labores & sabores, mas esse poeta, ávido de vida, também deseja firmar essa linguagem em um dos pilares da Poesia: A Simplicidade; coisa dificílima.
Há uma preocupação com a língua e suas regras, há o burilamento da palavra. Há formalidade; só não sei dizer se essa formalidade é de sua natureza, da influência de uma poesia mais tradicional ou se faz parte de uma postura acadêmica. No entanto, sinto que o poeta quer ultrapassar as barreiras, se libertar das convenções e buscar o novo em seu próprio caminhar. A influência do poeta Carlos Drummond permeia tanto o primeiro livro como o segundo, Diálogos Que Ainda Restam (Editora Penalux, 2010). Outros poetas são vistos transitando de uma página à outra. Mário Quintana passarinhará por muitas páginas.
Se no primeiro livro o silêncio (imposto ou auto imposto por José) parece ser uma alternativa em meio à tagarelice doentia, no segundo livro, o Diálogo se faz presente como protesto, como via de conhecimento e autoconhecimento através da troca, da participação do mundo. Aqui o poeta Fabiano Fernandes Garcez, naturalmente mais amadurecido, entende que o diálogo, em sua profundidade, pode ir além das palavras: não há diálogo no blábláblá. Se ainda restam diálogos é porque o poeta ainda tem muito a dizer. E a Poesia, uma das mais antigas heranças da Humanidade, é o diálogo profundo entre o homem e o homem para que seja possível um diálogo ainda mais profundo, um religare, entre o homem e o sagrado. Para tanto, será preciso acabar de vez com a palavra corrupta e resolver os conflitos da herança mítica de Babel.
Em Diálogos Que Ainda Restam, há capítulos e diálogos particulares. No poema Joguei Bola, que considero uma pequena pérola, há o diálogo com a criança que vive no poeta. No poema A Gaveta, a perda é tratada de maneira singela, mas contundente. Alguns temas do primeiro livro retornam; espelhos, reflexos, a solidão, o tempo, as águas, o diálogo com a própria poesia. Aqui há uma busca pelo entendimento de Deus, de Sua Essência.
O tema social aparece em vários momentos; em poemas como Ribeirinho e Nova Cantiga, mostrando a nudez da realidade.
Os Diálogos permanecem e continuam no segundo livro (deixando) Rastros para um Testamento (Editora Penalux, 2012), em seu terceiro livro; que é dividido em três capítulos. Em Rastros a infância é novamente evocada logo no primeiro poema; Lobisomem; a fera que mora ao lado da criança, revelando a parte selvagem, instintual do poeta. A criança tem que crescer e nesse processo aprende que crescer dói, como afirma o poeta em Dor de Perna.
No segundo capítulo, Fendas, o poeta nos diz no poema Escola, que dormir, às vezes é melhor que estar atento, pois temos a chance de sonhar, seja em uma sala de aula ou na escola da vida. Saber envelhecer também faz parte do aprendizado. Testamentos, o último capítulo, o poeta revela que os anjos “cegam quem os encaram/ porque seus olhos são frios, nada dizem”. Tudo tem seu peso e sua medida. Aqui se faz presente a responsabilidade e a culpa. O livro fecha com Obrigação e a amargura das Reminiscências que trazem à tona culpas e conflitos mal resolvidos. O menino medroso se tornou homem feito,na busca da coragem necessária para continuar a sua caminhada, poeta sem religião, expulso do Éden, condenado a deixar os seus rastros gravados Em Meio aos Ruídos Urbanos como prova e redenção.
Assim o poeta Fabiano Fernandes Garcez se reinventa em seu quarto livro, Em Meio Aos Ruídos Urbanos (Editora Patuá, 2015), como em um salto quântico para evoluir, deixando seu casulo para assumir uma vestimenta nova, ainda fazendo uso da mesma viga mestra que vem sustentando a sua poesia: A busca pela simplicidade. Mais ousado, dizendo mais com menos. E apesar do excelente trabalho gráfico/fotográfico e da simbiose entre imagem e palavra, a poesia aqui fala por si só; funcionaria sem perder a sua força, ainda que estivesse só em página branca, editada de maneira tradicional. A meu ver, a poesia de Fabiano Fernandes Garcez já começa com a dedicatória à cidade de São Paulo “berço e túmulo”; evocando a força de um Destino.
Os pares de opostos, fundamento do nosso Universo, serão encontrados em todo o livro. Já na citação de Roberto Piva, nos é mostrado uma contradição: Se é “um poeta na cidade/ não da cidade” mesmo que São Paulo, a grande metrópole, venha a ser o “berço e túmulo” do poeta.
Livro dividido em 04 turnos. O primeiro, Sob o Raiar do Dia, a grande metrópole vem tomar o seu café da manhã com o poeta. A primeira revelação é que a inocência já não é mais possível – “Parabéns! Você virou mocinha!”. E no segundo poema, Hora H, a protagonista continua descobrindo e entendendo que o amor dói. No decorrer do capítulo o raiar do dia vai iluminando a cidade e seus becos escuros, o preço que se paga, a roupa velha, as águas da enchente, as ladeiras, as tralhas, as vozes, o sexo e a miséria de cada um.
O segundo turno, Sol a fio, o poeta revela que o mesmo sol que aquece e da vida, também queima e mata. Em meio a todo o ruído da cidade com sua alma petrificada, saciar a fome do corpo já não basta; a fome do espírito talvez seja mais complicada. Há os vícios e o Ministério da Saúde Adverte: O Horror nasce dos horrores. Quem pagará pelo prejuízo da vida? Do índio Kaiowá americanizado ao sorriso inútil. A cidade anda de mãos dadas com a Demência. A carência social transpira pelos poros da Metrópole.
O terceiro turno, Ao Despencar da Tarde, onde cada personagem anônima torna-se herói da miséria do mundo.
Chegamos ao quarto e último turno, Queda da Noite, quando os ruídos são outros, os ruídos dos subterrâneos. A cidade arde com a poluição do que deixamos para trás, da chuva ácida, das águas do rio. A noite cai porque é pesada como o concreto da cidade.
O projeto Gráfico (Foto) e Textual nos dá a experiência única de tocar o coração negro da cidade, suas ruas, suas construções e desconstruções, sua miséria e seus heróis anônimos. No entanto, como dito antes, os poemas de Fabiano Fernandes Garcez funcionam por si, ora como um soco no estômago, ora como navalha na carne.
O que virá depois deste livro? Voltar atrás me parece impossível, ao menos, improvável. Seja como for, Fabiano Fernandes Garcez parece estar passando por um rito de iniciação. Creio que os voos daqui em diante serão mais altos, ousados e perigosos.
Mateus Machado teve Simioto na infância. Publica livros de Poesia. É a favor do caos criativo. Detesta propagandas de cerveja. Não vê esperanças na política e nos demais centros de poder. Não tem ideologias. Fã do John Coltrane, Lou Reed, Cartola e São Francisco de Assis. Apaixonado por música, literatura, cinema & gatos. Bicho do mato mora na mata. Mora em qualquer lugar.
Boa tarde Mateus Machado!
Gostei do seu texto, passei a conhecer melhor o Fabiano Garcez…E ter o prazer de conhecer você. Espero encontra-lo algum dia em algum evento de Literatura.
Grande abraço.
Guilhermina.
Oi Guilhermina, bom dia. Obrigado pela leitura. Em breve publicaremos outras resenhas, além de poemas de minha autoria. Grande Abraço.