CAVERNA PÓS-MODERNA
Agora, imagina, Glauco, os homens em moradas muito belas
— numa época vista e tida como, de todas, a mais “moderna” —
bem diferentes de como as nossas velhas residências eram.
Imagina esses homens, no interior desses seus lindos lares,
soltos, mas cercados por muros e grades por todos os lados,
saindo só quando podem, devem ou não estão acuados.
Imagina-os todos prisioneiros muito mais em si mesmos
do que nessa cela que eles costumam chamar de abrigo ou casa.
Veja-os calados, com olhos vidrados em elétricas telas,
cativos em suas mentes, sem correntes nas mãos e nas pernas.
Eles pouco conversam, se olham, se ouvem ou até se percebem:
não há mais tempo nem mesmo para aquilo que lhes interessa.
Nessas mesmas telas, só sombras, sobras, fragmentos da vida,
e não a gigante e real dimensão que é estar vivo nela.
Pedaços de gente, de sonhos, de planos, de vozes, de ideias
pululam e mesclam-se; como fantasmas errantes se alternam
à procura de atenção, numa fila de espera, e vociferam,
nessa bacanal — ou baile de máscaras — onde tudo é festa.
Imagina, Glauco, esses homens com essas telas a sós falando,
por todos os dias de todos os meses de todos os anos,
procurando por ver a si mesmos e também os outros homens,
mas as janelas elétricas, que nada escondem, nem respondem,
ligadas, são luzes que não iluminam o que há defronte a elas,
desligadas, são espelhos mostrando uma cara cheia de fomes.
O OLHO DE FERRO
para Michel Foucault e George Orwell
Feito um farol, porém desprovido de lume e soturno,
segue o olho da máquina sem piscar nem um segundo.
O olho me olha e olha tudo mais à sua volta
sempre com um olhar de pergunta, nunca de resposta.
Feito um deus, que tudo escuta, tudo sabe e tudo vê,
segue o olho mecânico a nos enquadrar numa TV.
Esse mesmo olho oco, que escaneia corpos e rostos,
jamais irá hackear o que há na alma do seu oposto.
Feito um cão de guarda, ou um juiz furioso e sem dó,
segue o olho de ferro a vigiar tudo ao seu redor,
numa fome de fera que tudo decifra e devora.
E, assim, olhos espreitam, surgem, dão botes feito cobras.
E, assim, mil olhos vão se clonando e, quanto mais, melhor.
E assim caminha a humanidade: acompanhada e só.
MARCHA MARCADA
Todo dia, alguma coisa se parte,
se quebra, se desfaz, de mim se aparta.
Toda hora, cato minhas muitas partes
e varro lá para debaixo da alma.
Todo dia, um alguém em mim se mata,
se queima, abre muitas crateras largas.
Todo tempo, ressoa essa sonata
e caio, um por um, nos buracos da alma.
Todo dia, pouco a pouco, me acabo,
incinero pedaços putrefatos
e envelhecemos eu e o meu retrato.
A sorte é que nunca me descontrolo.
Enquanto insanos se sujam de sangue,
a poesia põe minha alma no colo.
Marcelo Mourão é professor graduado em Letras (Língua portuguesa e Literatura), pós-graduado em Literaturas de língua portuguesa, pela Unesa e, em Literatura brasileira, pela Uerj. Nesse ano de 2018, inicia seus estudos no mestrado de Literatura brasileira, também na Uerj.
É professor, poeta, escritor, crítico literário e produtor cultural. Há onze anos participa do movimento poético carioca e de várias antologias e eventos literários. Produz e apresenta o sarau POLEM (Poesia no Leme), desde 2008.
Tem três livros solos publicados: “O diário do camaleão”, seu primeiro de poemas, de 2009, “Temas em literaturas de língua portuguesa: os diferentes olhares”, que foi a sua estreia como crítico literário, em 2015. E em 2016, lançou seu terceiro livro (segundo de poemas) chamado “Máquina mundi”.
www.mallarmargens.com.br
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