1
rasurar o próprio nome
desfazer os passos da jornada
infrutífera
os papéis com notas rotas ficam
melhor rasgados
nem é tão ruim abandonar livros
especialmente os lidos pela metade
não guardar fotos
cartas não existem mais
diluir o sangue em tinta spray
calar o que cola na dor
só o vazio pode ser contemplado
se você estiver realmente a fim
abandonar qualquer destino
qualquer ideia de destino
valia quando a gente brincava
de adivinhação
agora basta a vontade insana de
se desmanchar
de se espalhar com as folhas na praça
arrastar-me por aí como pergaminho
até que você, por acaso,
me encontre
2
poema é um bicho que devora a vida
e se transforma toda vez que você
tenta guardar num canto só seu numa
caixa de memórias perecíveis ou num
dispositivo de efeitos para bem do espírito
poema não serve de guia nem guru suas
ranhuras queimam como gelo e nos
lembram que nada pode traduzir o que
as imagens corroem e corrompem as falas
inaudíveis na algazarra de festas e feiras
e festivais o poema nunca está onde o
querem onde explicam onde capturam
porque sua teimosia é seu pulmão e
ele resiste para que seu osso fure mas
não trinque seu grito enlouqueça seu olho
não se canse de ver pelo avesso o que
se sabe como falta ou excesso
3
alguma harmonia
nesses dias de estrépito
não seria de todo
contraditória
desde que os supostos opostos
se atraiam e sejam qualquer
modo estranho de vínculo
algum equilíbrio instável dos
corpos que se apaixonam
canção interrompida
no instante do arrepio
na curva brusca do estio
quando todos os atos
são apenas intermezzo
e essa paralisia
aparente bloqueio da
visão pareçam a euforia
de um não movimento
Reynaldo Damazio é editor, crítico literário, escritor e gestor cultural. Formado em Ciências Sociais pela USP. Foi colaborador do Guia de Livros da “Folha de S. Paulo” e das revistas “Arte Brasileiros”, “Entrelivros”, “Mente e Cérebro” e “Nossa América”. É coordenador do Centro de Apoio ao Escritor da Casa das Rosas. Autor de “Poesia, linguagem” (Memorial da América Latina), “Nu entre nuvens” (Ciência do Acidente), “Horas perplexas” (Editora 34) e “Com os dentes na esquina” (Dobradura Editorial), entre outros. Traduziu “Calvina” (SM Editora), de Carlo Frabetti.
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