Ao relento
1.
O velho espertou ao ouvir uns passinhos perto da cabeça. As pálpebras se levantaram lentas, notava em volta certa inquietação. Procurou pela canequinha d’água que ficava sempre ao lado, mas dessa vez não estava lá, Onde estaria? Não ia se descobrir agora para procurar a caneca. Era tudo noite então, o sono um gigante maior que a sede, e o frio inibidor; portanto, voltou a pousar a cabeça no chão, amorteceu o crânio na almofada rala, sem vida, era quase um pano seco. Os passinhos aqui e ali, ouvia-os ainda, e mais uns risinhos em volta, O que seria? A luz acesa apagada da rua tornou a desaparecer. O sono voltou pesado, feito um soco no pensamento, e o espreitou até desacordá-lo. Mas isso não durou muito. Percebeu com estranheza o frio aumentar. Achou naturalmente esquisito. O frio, sabe-se, é mais frio quando lembramos dele. E muito mais quando se tem a sensação de friagem a envolver os pés sem meias, as costas, o corpo todo. Iria se congelar nesse respirador antártico; as pernas finas tremiam, sentia-se como se fosse um enorme nariz resfriado. O ar frio, esse incômodo plástico gelado, seria uma etiqueta no inferno.
2.
Foi quando notou então aflito que o cobertor, Era isso, então!, o cobertor já não cobria tudo, destampava as costas, os dedos dos pés gemiam, ou encolhiam descobertos, os joelhos quase no peito, amarrados por uns braços cegos, arrepiados, aquilo ia tomando uns ares cruciantes, glaciais. Uma, duas, quantas vezes isso? O frio dimensionava-se numa frente de ataques e remoinhos de vento e rajadas espúrias de desassossego e descabimento; o cobertor reduzia-se, Como?, conjecturava zonzo naquele desconcerto. Com algum esforço abriu um olho, depois outro, pareciam umas janelas embaciadas de neve e remela, mas nada viu de explicativo, e só por curiosidade esforçou-se para pôr um olho no totem elegante, um pouco à frente, em que se via o provocante anúncio de um aquecedor, acima desse placar: nove graus soturnos de frieza, indiferença, menoscabo e esquecimento. Tendência dedutível: tudo iria piorar. Nove graus no chão é gelo. Mas o sono, maior que o frio, dorme velhinho, dorme — era a voz do fundo de uma caverna —, o sono é um calorífero sentimental. Depois de todo esse rebuliço, deu-se conta, muito remotamente, que os risinhos aplaudiram. Seria um alívio? A despeito do incômodo, ajeitou o que pode com o cobertor, voltou a dormir.
3.
Mas não muito. Já não encontrava mais o cobertor, nem a rala almofada que sumira enquanto procurava a manta puída e encardida. O que fazer?, perguntou-se com desespero. O único aconchego possível, já que em volta não se via nada, era o próprio chão, que ainda retinha de alguma forma o calor dele, sabe-se lá como, um rastro ardente de pele e osso decalcado no papelão, mas isso, sabia, era ligeiro, quase nada, logo seria o polo, o gelo, iria esfriar mais, viraria um imenso azulejo. Começou a friccionar as pernas, depois com os braços os próprios braços, a nuca, a cabeça, os ombros, a esfregar o que pudesse nas pedrinhas da calçada, nos ocos dos ralos ali perto, nas gretas de ferro embutidas no cimento, nas falhas dos tampos que o rodeava, como se fosse furar aquele pedaço de calçada, em busca daquele vaporzinho mínimo, fútil, aquela fogueirinha do fogo primevo, o graveto de palha invisível que o corpo em movimento tentava acender; ainda assim, talvez porque o sono de muitos modos esquenta a alma, caiu em si, no chão mesmo, até dormitar, ou esmaecer, quem saberia?
4.
O bom do sono é que o sono em si não dorme nunca. E dura não se sabe quanto. Mas não importa o quanto seja, será sempre pouco, sobretudo se for transparente e plástico. Tinha agora só a roupa do corpo — e nem se diga que o corpo nesse caso fosse a própria roupa, a saber: um trapo de calça brim, uma camiseta da eleição passada, um boné qualquer e nada embaixo. Acima disso, só risinhos, os risinhos furibundos, esse véu hiperbárico de horror. E aí veio o arremate, a delícia dos homenzinhos em volta, os mesmos dos passinhos mansinhos e dos risinhos travessos: jogarem nele uns copos d’água, uns pingos de chuva, abrirem por assim dizer uma torneira d’água indiferente, e nem tanto transparente. Até o ponto de o frio ser pleno e úmido em cada partícula dele, e tudo estivesse a menos de nove graus, por inteiro, no céu e no inferno. E se pensa que é pouco, nessa circunstância nove graus é o mesmo que vinte abaixo de zero. Ou trinta, o chão é siberiano, o velhinho, um Alasca, um Nepal de sorvete, agasalhado única e selvagemente por esses enérgicos gracejos. Foi como durou na noite.
5.
No dia seguinte o sol brilhava. E tudo secou.
Carlos Neves é músico, fotógrafo e jornalista. Lançou em 2017 “Máscara da invisibilidade”, seu primeiro romance, pela Editora Patuá. Participou da coletânea “Taras, Tarô e outros Vícios” (Risco Editorial) e “As moscas” (ed. Dulcinéia Catadora). Recebeu uma menção honrosa por sua participação no Prêmio “Off FLIP de Literatura”, em 2008. Faz parte do coletivo literário Palavraria.
*Imagem de autoria desconhecida
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