Resenha: Caminhão de mudança, de Jeanine Will, por Mateus Machado

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Caminhão de mudança, 2017, Jeanine Will, Ed. Córrego

 

 

Jeanine Will – Quando o Sonho é Destino

Por Mateus Machado

 

 

Arthur Rimbaud em sua “Carta do Vidente” fala que “a mulher descobrirá o desconhecido! Seus mundos de ideias divergirão dos nossos? (…) nós as teremos, nós as entenderemos.” A mulher descobrirá o desconhecido que está dentro dela mesma, porque é sacerdotisa da Alma do Mundo, como sempre foi; ela apenas está, depois de séculos de repressão, retomando o seu poder pessoal através do Verbo.

Este novo Século, mais do que nunca, dará Voz à mulher e creio que, é a mulher que ensinará ao homem a falar de Alma para Alma.

Jeanine Will inaugurou a sua bibliografia com o seu “Caminhão de Mudança” provando a sua maturidade poética. E parece nos provocar com o título do seu primeiro livro, segundo a nota testamentária de Breton – “…peço que me transportem ao cemitério num caminhão de mudanças”.

Ao folhear o livro, antes de iniciar a leitura com mais calma, lembrei-me primeiramente do poema “Não Toques nos Objetos Imediatos” de Herberto Helder:

 

Não toques nos objetos imediatos

A harmonia queima.

Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,

são loucos todos os objetos.

 

Os objetos de Jeanine me parecem mais translúcidos, metamórficos, ainda mais leves; aí está a loucura deles. São imediatos porque transitam entre o sonho e a vigília, se deslocam e se chocam entre si. E chega a hora em que temos que organizar o nosso “quartinho da bagunça” (nosso inconsciente), revirar as tralhas amontoadas, limpar o mofo. E, numa mudança, muita coisa acontece; coisas se quebram, se perdem, objetos são esquecidos, são redescobertos, lembranças são agitadas nas águas da memória. Cada objeto tem o seu valor pessoal, carrega a sua história. Mudar de Casa é um tour para dentro de nós mesmos.

A poeta se preocupa com as imagens, com a fotografia no escuro, de olhos vendados (se preciso) como se fotografasse cenas oníricas dançando em sua memória. É o olhar de um voyeur que sabe ver de dentro para fora e consegue captar as sensações em um piscar de olhos.

Sobre o caráter onírico de sua poesia, já mencionado por Claudio Willer, isso a aproxima, intencionalmente ou por acidente, de obras noturnas e seminais como Finnegans Wake de James Joyce. Há também o imaginário de algumas culturas arcaicas, entre elas os aborígenes australianos, em que a vida é um grande sonho e ao morrer, despertamos.

No poema “Um Minuto de Pedra” a poeta revela que “a noite é pesada ao cair do mundo”, é a noite oculta no piano, infiltrada em suas teclas, ou pousando como uma nave mãe sobre a cidade dos vivos e dos mortos. A noite torna-se uma entidade palpável e ela pode ser tocada sim, no resumo dos corpos adormecidos ou não. É nos sentidos da matéria que a noite impera.

A noite predomina. Mesmo em vigília, insone, a poeta é mergulhada nas sombras do inconsciente levando consigo apenas os “espinhos de luz” cravados nos olhos; é a luz de sua própria centelha poética que ilumina as trevas no silêncio do Verbo (da trama do Verbo).

A poeta Jeanine Will nos traz a sua poesia-puzzle no que concerne as combinações inusitadas – objeto/subjeto/trans-objeto – encaixando perfeitamente as peças de paisagens diferentes em um mesmo quadro, em uma única imagem; o auto-retrato do seu íntimo reflexo, ou podemos ir mais além; o auto-retrato do “outro”; e o “outro” é o espelho de si na busca de sua completude.

Sua poesia vem traçando caminhos carregados de paisagens exóticas, construindo uma geografia em constante metamorfose; ora se retrai ora expande. A delicadeza de sua poética talvez seja a característica de mais fácil identificação. Basta lermos versos como estes:

 

…a dor arranca pétalas dos lábios

há dez anos desembrulho essa cidade

e agora você se coloca na moldura dos olhos

(…)

“…e me sobe um paraíso na nuca:

     Sua voz se acende às três da manhã

Ou ainda

apanho com os olhos uma intenção de estrela

A morte também transita e faz parte da paisagem, ainda que como um sonho, mas nunca como um pesadelo.

a morte levante-se do chão e toca nosso trompete

 mas o som de metal mastigado ainda não caria a noite

 

Estou convencido que na poesia de Jeanine, ao menos em seu primeiro livro, a morte é quando a alma muda de lugar; e a alma está sempre em movimento, habitando, de tempos em tempos, corpos diferentes para experimentar outros sonhos. E não se trata do medo da morte, mas de sua aceitação, uma vez que os objetos são as provas íntimas da transitoriedade da vida; a ilusão da vida se revela paradoxalmente na matéria, na concretude dos objetos. Morrer é mudar de lugar; ainda que o corpo (ou a alma) seja transportado até o cemitério em um Caminhão de Mudança.

 

 

Mateus Cunha: Teve Simioto na infância. Publica livros de Poesia. É a favor do caos criativo. Detesta propagandas de cerveja. Não vê esperanças na política e nos demais centros de poder. Não tem ideologias. Fã do John Coltrane, Lou Reed, Cartola e São Francisco de Assis. Apaixonado por música, literatura, cinema & gatos. Bicho do mato mora na mata. Mora em qualquer lugar.

 

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This Article Has 1 Comment
  1. Jeanine Will Reply

    Mateus, muito obrigada pela leitura, pela resenha e pela divulgação! Abraços!

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