“Movemo-nos entre as noites e as dunas”
ao Luís Filipe Castro Mendes
Clandestinos, “movemo-nos entre as noites
e as dunas”, uma ressonância estreita,
(sob o eco, e eles escoam-se no eco)
como de ponto nulo onde nos vertemos.
A única e irrepetível ilusão que cintila
sob cúpulas de misteriosos materiais solares
são certas reminiscências fulvas
da Pólis, e ela não é um lugar findo; segreda
e suporta-se sublime na sua exclusiva periferia
como o poema na folha em branco,
exige que o corpo continue a ser corpo
e que a ilusão não renuncie à ilusão,
que o horizonte, o ápice da carne acesa,
(a política do mundo em sua extrema e breve
beleza, e “então o que o é em parte será
aniquilado” , pois não pode perdurar)
prolongue, sem adulterar o sangue ou o fogo,
a incidência da persistência sobre o lugar.
Clandestinos, “movemo-nos entre as noites
e as dunas”, agónicas estirpes de passos,
(sob o destino, e eles contemplam o destino)
como de ordem nenhuma onde nos derruímos.
Mas ainda há sol nos filões do mundo, “que nós
a tempo não sabemos ver”, não soubemos ver,
e a vida em chamas procura “um sítio onde pousar
a cabeça”, porque é Janeiro e o corpo está gélido .
E sob a extinção dos lírios, a fé, “chamo-lhe isto
porque não sei o nome de isto”: a culpa implícita!
(inédito)
.I.
No princípio foi o homem (com um cão espetado numa estaca brilhando sob as áscuas da sua solidão para o resto dos seus raiados dias), e o homem criou um Deus, e o homem inflamou Deus na essência de rosas da sua perversão: a peregrinação sobre a argila e água impura para que não seja lembrado o seu mísero nome. No princípio sobreveio o homem, a chaga mais negra que a carne e também que a torpeza viva do crepúsculo: um esplêndido cântaro de purulência, uma hástea em fogo com a floração dos credos. No princípio era o homem, e a opulência do sopro.
in, acrónimo, Edições Sem Nome, 2015
Limpezas
Serenamente, como se detivesse todo o tempo
do mundo e toda a luz do astro-rei
Jorge Luís Borges lavou toda a biblioteca
mergulhando os livros em água de rosas brancas,
era o tempo do expurgo, do exílio da traça,
há de certeza maneiras bem piores
de nos despirmos da inutilidade dos dias
passados em improfícuas quimeras.
*
Ah, só o livro “Historia universal de la infâmia”
escapou ao genocídio das limpezas
nessa nebulosa aurora de 6 de Agosto de 1945
quando Buenos Aires ainda abria a noite
pois “os poetas, como os cegos, podem ver no escuro.”
in, Ruídos e Motins, Palimage, 2016
João Rasteiro (Coimbra): Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela FLUC/Universidade de Coimbra. Tem poemas publicados em revistas e antologias em Portugal, Brasil, Itália, Espanha, Finlândia, República Checa, Moçambique, México, Hungria, Colômbia e Chile. Obteve vários prémios, nomeadamente o Prémio Literário Manuel António Pina (2010). Em 2012 foi um dos 20 finalistas do Prémio Portugal Telecom de Literatura (poesia). Publicou 16 livros (Portugal, Brasil e Espanha), o primeiro, A Respiração das Vértebras, 2001 e o último, A rose is a rose is a rose et coetera, 2017, levado à cena pelo grupo “Os Controversos” (adaptação e direcção de Ricardo Kalash), no final de 2017. Possui alguns contos publicados e escreveu algumas letras para a ‘Canção (fado) de Coimbra’ – ( https://escritores.online/escritor/joao-rasteiro/ ).
Be the first to comment