Três poemas de Rique Ferrári

a viagem 1 - Três poemas de Rique Ferrári

 

a viagem

primeiro corra até a janela, olhe através do vidro, a cidade em fogo-luz acanhados quartos de pontos velados, raízes de velas ao chão

o serviço da chuva em almofadinhas de vento – faz frio
penso que desastre total das concepções
isto de nos vermos nos espelhos mas nos enxergarmos nas janelas; no colégio nunca comentaram a respeito

agora vá um pouco mais, para o lado de fora da janela
psicografando os restos de brisa, as fornalhas dos condescendentes e mutantes painéis de luz; mantenha o equilíbrio, ora na constelação de janelas ora no deserto de céu
– e que tanto

como as harpias

destemidos do gélido e do fogo, iríamos chegar neste ponto, você sabe, é um convite:

pule

com sua face completamente escancarada na conjunção dos átimos de segundos, vislumbrando a gênese e os saltimbancos letreiros, os faróis trilhados e então a coragem

te leva

até a janela daquele amigo amedrontado pela leitura dos sinais presentes
até a rua onde franciscanamente você subiu/desceu raspando o limo dos muros, quando criança;
lembra?
seus pais batizaram-no e deram um nome: – filho
e então sua avó ganhou um pequeno deus

as portas estão abertas

volte sempre.

 

 

onde o coiote não se esconde 

não olhe para o sol
aqui ele é 10x maior e você morre

conexões com a turma do Homem
e os rabos solares chicoteando-nos

quando estiver triste, vá a este endereço:

porta verde, cachorro gordo na frente
velho artesão, ramalhete de pedras vermelhas, dois passos à direita

ouça o crack crack das rochas de sal
você pode apaixonar as tetas dos vulcões
ou dançar com os crucifixos aleatórios
por onde esfregam orações na grande pista desértica

grafitando as pedras, os grãos surfistas remetem à palavra ——-> go!

(miragem ventriculada)

satisfação na sunga seca do meu tempo:
sobre os lindos flamingos da terra, encanta-me ver apenas seus mosquitos

como se um quadro multicolorido pudesse realinhar os órgãos de meu corpo
oxigênio massageando os planetas internos
pulmão
anéis de coração
cordilheira de dentes
pé maior

fazendo posição de vida, estou
o meu corpo, o corpo habitado, está aqui, opa, uhu, outra vez

o sol come a terra
a terra come a lua
a lua nos devora

saúde!

 

 

1989

éramos crianças
eu, minha mãe e minha irmã

éramos uma sociedade em conta de participação:
a presidente, a gerente, o assistente

na melodiosa arquitetura infantil, boba fase
considerei que o jardim da casa ficava no quarto dos pais

por lá deitávamos na perpétua realização das coisas, sendo coisas um mundo constituído de pipoca, cobertas, brinquedos e subtreco de vicetrecos

uma brinquedoteca de ácaros; por isso coçava, coçava, coçava
(nem sabíamos que 15% do peso de um travesseiro velho são ácaros)

havia uma brincadeira;
a madre dizia: lá vem o lobo, o lobo
e os três escondiam-se embaixo das cobertas – a subcasa da casa, o vale cavado do ar

nos televisores, em antenas ferrugentas a fazer zunido de vespa
havia homens vestidos de japoneses
mulheres molhadas de sangue
didi-dedé-mussum-zacarias

meu dia, também em fase de crescimento, tinha apenas dois turnos:
estar com elas/não estar com elas

e no pantanoso outono serrano, voando por cima do céu, atravessando roupas de orvalho e pousando em nossos pés; havia o pássaro do frio

era assim que seu veludoso corpo anunciava a desintegração da tarde; e nossa sessão de troca de felicidades encerrava na semimorte que há nos fins de dia, para iniciar os preparos: coxas de galinhas descarnadas no jantar

tempo brônzeo

éramos três porquinhos;
e o lobo, o lobo, coitado
onde foi parar?

 

 

 

Rique Ferrári é sommelier, professor e colecionador de antiguidades.
Escreve poesias desde sempre, mas só agora lançou seu livro Rocket Man.
Um projeto desenvolvido em viagens pela América do Sul, e todo ilustrado por grandes tatuadores brasileiros.

 

 

 

 

 

 

 

 

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