VERGONHA
Descubro, aos 39 anos,
que a vida é bonita.
Que a situação de abuso
vivida aos seis anos
só não me deixou dodói
porque pensei se tratar
de uma brincadeira.
Descubro que, primeiro, deveria
ter aprendido a escrever sonetos.
Quando meu avô pediu
“não me levem para o hospital”,
deveria ter entendido
que ele só queria
a decência de morrer em casa.
Que negar a si mesmo
é a maneira mais triste
de negar a Deus.
Eu me neguei durante três décadas.
Descubro que fazer listas é melhor que cerveja.
[NÃO TEMOS UM TÍTULO, AINDA]
Nunca nunca nunca
use a palavra nunca
Acenda um cigarro
engula o escarro
assopre a espuma mas nunca
nunca use a palavra nunca
Algumas vão escapar
pelas pontas dos dedos
algumas vão grudar em você
outras vão cair
e despedaçar
Você se mantêm impassível,
são apenas xícaras
A velhice não chega para todos,
esta é uma verdade feliz
Posso ouvir sua voz no fundo do vídeo,
tínhamos cigarros e ríamos de tudo
brincávamos de horóscopo
mas evitávamos a palavra câncer
A velhice não chega para todos,
esta a verdade mais triste
Nunca nunca trate mulheres
como xícaras nunca
nunca espere a cura
nunca ame depois
Nunca despreze a palavra nunca
Você morreu aos trinta
com um tiro na nuca
Mas evitávamos a palavra câncer,
não foi nossa culpa.
PARTIR
1
Todos os dias penso em partir.
Mas sinto o lodo das pedras,
o deslizar dos peixes e
o calor molhado do ar
de minha terra / minha terra é vermelha /
segurando-me as raízes,
e sou obrigado a ficar.
2
Todos os dias penso em partir.
Compro o bilhete,
dobro camisas,
separo a escova de dente.
Mas uma chamada interrompe a noite,
rasga o inverno sobre mim,
afastando suas bordas:
diz que quer me ver.
Deixo-me iludir / fui lembrado /
e decido ficar.
Eleazar Venancio Carrias nasceu em 1977, num sítio no interior da Pará. Publicou Quatro Gavetas (2009), vencedor do Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura 2008, na categoria poesia. Em 2017, publicou, pela e-galáxia, o e-book Regras de Fuga, cuja versão impressa será lançada em 2018 pela editora Fractal. Mestre em educação pela Universidade de Brasília, atua como pedagogo no Instituto Federal do Pará – Campus Tucuruí.
Orgulho de ser amigo deste nobre.
Obrigado pela leitura, Jarbas, meu velho amigo.
Há sutileza em falar de temas evitados por muito. Vc é sensível como poucos. Meu estimado poeta!
Sua leitura e comentário significam muito para mim, Elizabeth Branch. Tanto me tocam quanto me animam. Obrigado.
Parabéns pela publicação, Eleazar, meu amado.
Obrigado eu, meu anjo.