Leila Guenther publicou os livros Viagem a um deserto interior (Ateliê Editorial); O voo noturno das galinhas (Ateliê Editorial), traduzido para o espanhol (Borrador Editores) e editado em Portugal (Nova Delphi); e Este lado para cima, (Sereia Ca(n)tadora, Revista Babel). Participou das antologias 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras (Geração Editorial), Cusco, espejo de cosmografías: antología de relato iberoamericano (Ceques Editores), Outras ruminações: 75 poetas e a poesia de Donizete Galvão (Dobra Editorial), 70 Poemas para Adorno (Nova Delphi), entre outras. Mantém o blog Na linha da vida.
CIRCO DOS MEDOS
Fecharam-no.
Talvez fosse clandestino.
Talvez houvesse irregularidades.
Partiram, sem riso, os palhaços.
Os trapezistas se foram pelos ares.
Os cavalos correram assustados.
O dono fugiu com a mulher barbada.
O domador se sentou em seu banco de afugentar bichos no meio da
[praça
E nunca mais se levantou.
As feras escoaram, silenciosas, pela terra.
Apenas uma, a menor de todas,
ficou onde estava, quando destrancaram o cadeado.
Tudo se movia, menos ela.
Ensaiou com insegurança alguns passos ao redor
da tigela de água.
Mas as patas de digitígrado titubearam sobre o piso
por causa das unhas longas,
nunca aparadas.
(Ela mal pisava o chão quando exposta aos olhos curiosos dos
[pagantes:
sempre equilibrada sobre a palma da mão do encantador de serpentes,
[pulgas e outras espécies de tamanho diminuto.)
Cada vez menor.
A tigela de água parecia do tamanho do circo que conheceu.
Ela ainda espera atrás das grades enferrujadas da jaula entreaberta.
SAMĀDHI
Espalhadas todas as moedas do pote sobre a mesa
pus-me a separá-las por valor em pequenos montes de dez.
Concentrei-me na tarefa meticulosa de contar com atenção
como poucas vezes me foi dado o privilégio.
Por um momento fez-se o sentido que desejei estender
a todos os limites do tempo.
Que cada pequena coisa guardasse sua verdade,
que eu ficasse presa para sempre àquele instante
quando o passado era uma carta rasgada
e o futuro, um envelope vazio
e a alegria era contar moedas de centavos
que nem eram minhas.
TIMBUKTU
Escorre o sal pela ampulheta.
O cão e eu contemplamos
a paisagem
para onde iremos um dia.
Um dia sairemos desta casa
eu e o cão, que,
pelo contágio,
ficou doente.
Recolhi-me com ele no fim do mundo
depois de ter espalhado o escuro.
Eu e cão
que só emerge de dentro de sua carcaça
quando atraído pela luz.
Ele e eu atravessaremos o deserto
rumo à fonte de fogo
onde outrora
do sal, do barro e do pó
se ergueu um mundo.
Para lá iremos
quando a peste acabar.
Cada vez mais Leila Guenther nos encanta. Sucesso, querida!