O CORAÇÃO COXINHA
“Ao final, uma revelação: ‘Na realidade, não houve coxinha. Isso não existiu, simplesmente tomou forma, corpo. Ela falou isso por medo de ser torturada. Não houve produção de salgados com carne humana’, garantiu. Quando perguntado sobre o golpe na jugular que costumava dar nas vítimas com uma faca, o acusado respondeu: ‘Segundo a Bíblia, não devemos usar o sangue, pois o sangue não é puro’, justificou, acrescentando que a carne humana tem sabor de carne bovina”;
Recorte de notícia de jornal, 13 de setembro 2014.
“Testemunhas relatam que, antes de atirar, os criminosos teriam questionado sobre quem tinha passagem policial. O secretário de Segurança Pública disse que perguntar sobre o passado criminal e usar coturno é ‘típico de quem quer fingir que é policial’”.
Recorte de notícia de jornal, 14 de agosto 2015.
1.
“Me vê uma coxinha”,
foram suas palavras finais.
Nem deu tempo de ele responder se tinha
ou não
antecedentes criminais.
A despedida de um outro foi:
“Me passa o catchup?”
Carne de boi?
Mal-passada, por favor.
“Chupa!
É timão nessa porra!”
(2 a 1 no tricolor).
Então entraram os agentes.
Sobre isso o que se pensa?
Que disseram: “Minha gente,
me desculpe, com licença,
alguém que tenha antecedentes?”
E quem sabe assim ocorra
com quem guarde em sua manga
uns tantos mangos
que empregar em seu socorro?
Nos peitos ralados de frango
os corações aceleraram, de repente.
Entrou atirando a polícia.
E escorreu no chão do bar
o catchup,
o sangue de boi
e o sangue
de gente,
e tal foi o chute
que ainda rangem pela noite
as doloridas dobradiças.
2.
Enxurrada sangüínea.
Escorre suave, dobrando a esquina.
O impávido colosso
e pelo osso o ímpio ávido
atirando-se ao pescoço
como corta um “baby-bife”.
Sobre o peito do mulato –
a chibata? – o implacável
de um rifle.
A esta carne de segunda e cor suspeita
não revestem moda e grife…
É necessário antecedente criminal?
Dentro do cérebro caipira
de um tira
que se acha algum xerife –
está montado o tribunal.
E quem sabe? Se ele atira,
é porque sentenciou
o solitário neurônio.
Comoveram-se os estômagos
acostumados ao açougue?
Espantaram-se os humanos
de manhã que se enfileiram
nas esteiras
dos autômatos?
Alguns que à noite inteira
enlouquecem os bafômetros?
O rodo a passar
o dono do bar
não sente à tona vir o vômito.
Alguém num canto da cidade engole o choro –
numa cela
da cadeia,
sob os toldos
destas ruas…
Indecisos estão todos
entre as opções duas:
dar o peito ao matadouro?
ou desfazer do próprio couro
os cadarços destas veias
e deixar que a coisa flua…
Este sangue
de boi, este vinho
chapinha, a carne de frango
que se entranha nas coxinhas,
as palavras derradeiras
e últimos sopros
de vida.
Esta sopa
no balcão das prateleiras,
bruto jorro das feridas.
Pois enquanto lucro líquido render
irá do sangue o suco rico
borbotar e escorrer
dos corações aos bueiros
e garrafas de bebida.
3.
Começou o bangue-bangue.
Com certeza que não é um faroeste
em direção de Tarantino.
Mas ao ver todo esse sangue,
comentando na internet,
alguns estão se divertindo.
Isso é pouco
para o gosto popular
pelas sessões de extermínio:
treze homens em um bar,
nalguma esquina de Osasco,
como carnes de churrasco,
embrulhados o alumínio.
Querem mais do que sessões de cinema.
A vontade das urnas
tem tesão pelos coturnos
do Datena!
Se a culpa
é sua ou minha,
o meritíssimo interroga?
Esse mesmo catchup
a manchar o colarinho,
o babador de vossa toga!
De terror esse roteiro:
o ministro do supremo,
dos vampiros
o mais torpe.
Mas, dos gêneros que temos
nesta pátria da coxinha,
o que dá maior ibope?
Disparo de tiros
e fuga a galope…
O velho oeste brasileiro
sob esporas escoicinha
de um capitão do BOPE.
4.
Sou mesmo um cara de sorte
por ter a ficha limpa:
não quis Deus me dar a morte
como simples par-ou-ímpar.
Mas por nunca ter perdido minha calma
sinto às vezes uma súbita vergonha,
ouvindo Mozart no meu apartamento
enquanto há tímpanos aí que se arrebentam
sob golpes de coronha.
Por um triz não me arrependo
de não dar ouvido ao ódio,
de viver pacificando a bomba-relógio
que implode meu humor habitual.
Não tenho fetiche por arma
nem consigo me livrar dessa paúra
de acumular um karma
e despertar nalgum futuro
bem pior que o atual.
Chegando lá
os anjos vão
me perguntar
se tenho
ou não
antecedente criminal.
Também não é uma opção
meu breve tempo eu encurtar
e contra a têmpora voltar
essa faísca de indignação.
Porque se fujo
vai que os anjos me perguntam
se está suja
minha ficha
com o sangue
que esguicha
de meu próprio coração…
Até o fim postergarei!
Se oferecer a outra face –
é minha lei,
cortar o gume de uma faca
só legumes e alfaces, –
o meu mote.
Mas dizer que sou da paz é muito fácil,
se não moro lá no morro
onde às luzes das rajadas
com capuzes os fardados
caçam gente como esporte.
Não reparem que escorra
o sangue em jorros aos bueiros:
nas cozinhas este esguicho
suja toda e cada ficha
de um por um dos brasileiros.
Holofote que ilumina
um outdoor de fast-food,
o fino corte de uma faca tramontina
e os pedaços de humana negritude.
Do sagrado
tabernáculo
à taberna
de Osasco,
o que virou vosso rebanho?
Recheados
de bala
e embalados
a vácuo,
nacos de picanha.
Vasculhemos bem as sobras,
papelão não vai ao lixo:
ovelhas que mordem e balem
as velhas palavras de ordem,
entram massa de manobra
saem massa de salsicha.
A tudo mói
o moedor universal.
E vão atrás office-boys,
apocalípticos heróis
deste sistema que constrói
um assassino serial.
Agosto 2015
Post-scriptum:
“Sou meio coxinha sobre isso. Sou filho de polícia, né? Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”;
Esta frase, publicada nos jornais, foi pronunciada em entrevista por certo secretário de governo (um entre outros serial killers que ocupam as cadeiras do Poder Executivo). Janeiro 2017.
PEDRA MOLE, ÁGUA DURA
“Em 2015 e 2016, Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, colecionou medalhas em competições estudantis na cidade do Rio de Janeiro. Mais habilidosa no basquete, ela sonhava em se tornar atleta profissional e se preparava para isso na escola. Na tarde de ontem (30), a adolescente foi morta com dois tiros na cabeça e um no tronco, dentro da escola municipal Daniel Piza, quando treinava com a equipe de educação física… Testemunhas relatam que policiais atiraram contra homens que estavam perto da escola, esses tiros teriam atingido a quadra e também a sala de direção. Professores relatam os mesmos fatos e contam que tentaram proteger as crianças nos corredores. A turma na quadra, no entanto, estava mais exposta. A família questiona que a morte tenha ocorrido por bala perdida: ‘bala perdida é um tiro, não três’”;
Recorte de notícia de jornal, 31 de março 2017.
Qualquer rua que eu pegue
é uma árvore cortada.
Cada página que eu vire,
uma troca de tiros
num colégio,
um corpo caído na quadra.
Via de regra,
uma operação de guerra
com a pior das estratégias:
do quartel da infantaria ao infantil um.
O caminho mais curto
para um alvo comum…
Escuto:
caiu uma colher no andar de cima.
Viro de lado na cama,
o outro ouvido se aguça:
o soluço
da criança
pelo leite
que derrama.
Casa própria, quem não sonha?
O beijo áspero da insônia
após muito mastigar o meu espírito
me cospe
da janela do cubículo
à próspera metrópole dos ricos
e dos pobres.
Como um copo caído
o corpo na cama estatela,
o coração cai no carpete.
Já me vou pela janela
como seta de alabarda…
Num arredor desconhecido
o pesadelo se repete:
a colher
que se converte
em fuzil
na mão do guarda.
O disparo à queima-roupa
em quem nem roupa tem
somente às vezes
dá manchete:
“Maria Eduarda,
13,
jogava basquete
na quadra”.
Os tribunais se abstêm.
A ninguém a tropa poupa
e quando acerta uma criança
quase ganha dos jornais os parabéns.
Num bairro de classe média,
o soluçar da ambulância,
o choro arrependido do caminhão de gás…
Espiam das janelas os vizinhos assustados
e por todo o prédio
suam frio os azulejos…
Em qual boca de fogão o bom rapaz
terá dado seu último beijo?
Qual terá sido
a bad trip do
corpo estendido
no paralelepípedo?
E este que dorme profundo
abraçado ao corote
no coreto da cidade?
Não abraça, acaso, a morte?
Quantos desiludidos por segundo
no mundo da pós-verdade!
As mansões se erguem aos eleitos entregues
em grinaldas elétricas que cospem faíscas…
Para os prósperos se abrem os caminhos.
Próximo cospem
os homens de quepe
e com ódio confiscam
de um pobre catador o seu carrinho.
Qualquer rua que eu pegue
é rota sem alternativa:
de um lado o carro-forte
repleto de cheque,
de outro o esquadrão da morte
em suas “rondas ostensivas”.
Nessa rua qualquer
que divide o Brasil,
o fuzil é colher
e colher o fuzil.
Estou fadado a ir por ela
declarando estas rimas quase estúpidas,
enquanto na tv alguém ao vivo
conjuga o verbo “estupra”
no modo imperativo.
Por esta rua um dia eu volte
e arregalem-se as janelas
quando içarem da revolta
e negra vela
para além do horizonte do valor do combustível.
O coração da boca,
que as lágrimas engole
mas não cala para a época cativa,
é dele a glória e o milagre
de mais forte bater que a louca dor
da pedra mole do petróleo
e a água dura da saliva.
Abril 2017
Post-scriptum: o 41º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o mesmo que matou Maria Eduarda um ano atrás, hoje mata Marielle Franco e Anderson Gomes, com as mesmas balas que mataram 23 na chacina de Osasco em 2015. Liga esses três episódios um rio de sangue que não pára nunca de correr nos bairros pobres.
Chega de mortes! Abaixo a intervenção militar! Fora golpistas!
(16/03/2018).
André Nogueira: nascido em 1987 na cidade de Herdecke, Alemanha Ocidental. Registrado cidadão brasileiro no Consulado em Munique. No Brasil desde 1991. Radicado na cidade de Campinas (SP). Formado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo. Tradutor, poeta, ensaísta.
Be the first to comment