“Mecânica”: a celebração da incerteza, por Jana Lauxen

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Mecânica, 2017, Thiago Nelsis, ed. Benfazeja

 

 

“Mecânica”: a celebração da incerteza

Por Jana Lauxen*.

 

Dizem que, enquanto humanos, somos mais parecidos do que diferentes. Apesar das distâncias culturais, sociais, geográficas, políticas e religiosas que superficialmente nos separam, existe lá no fundo uma unidade; algo que nos conecta e vincula, e nos torna um só.

Somos parecidos na dor, na perda e na angústia diante de uma existência finita, melindrosa e incompreensível. Tememos a morte, não importa o canto do globo terrestre que a gente habite. O tempo assombra a todos como um fantasma impossível de exorcizar, num lembrete constante do fim. Compartilhamos a incapacidade de explicar nossa existência, e a inutilidade em procurar sentido em sensações – inclusive no próprio desespero surdo que tal incapacidade provoca.

Por isso, independente das aparentes diferenças, existe uma essência que pertence a todos e a cada um, não importam as fronteiras e as disparidades em nosso sistema de crenças. Uma unidade que resiste e persiste bem lá no fundo do oceano que carregamos em nós, onde a razão é incapaz de alcançar.

Disse tudo isso porque, recentemente, tive a feliz oportunidade de ler o livro Mecânica (2017, Editora Benfazeja, R$35), do escritor gaúcho Thiago Nelsis, e na obra o autor mergulha, com o destemor típico dos desassossegados, nas águas íngremes que levam até esta unidade essencial, ao mesmo tempo tão desconhecida e tão familiar.

A obra reúne 72 poesias, que formam a medula não linear de um livro escrito por um autor inquieto para um leitor tão inquieto quanto, criando um canal de diálogo mediado e traduzido pela percepção de cada um. A lógica dá licença à intuição, levando a conversa a um patamar mais sutil e, justamente por isso, mais perspicaz.

As poesias de Mecânica possuem um gingado ao mesmo tempo delicado e caudaloso, marcado por uma seleção pontual de palavras, a fim de revestir a obra com uma roupagem tão filosófica quanto estética. Assim, a inquietude gerada pelos absurdos cotidianos identificados pelo autor é semelhante em quem escreve e em quem lê.

Não por acaso, o livro se chama Mecânica, e sua capa apresenta os mecanismos de um relógio, este senhor sem rosto e sem nome que obedecemos sem questionar. Nossa consciência, afinal, se manifesta de modo muito parecido com uma máquina, limitada pela sua própria falta de sentido, e inserida em um contexto onde apenas a repetição garante o funcionamento. Movendo-se, apesar de nunca sair do lugar.

Daí a ânsia por transpor tais mecanismos e suas restrições, buscando reencontrar o ser, além do estar; o tornar-se, mais do que o simples existir.

Thiago Nelsis conseguiu, através de uma poesia sofisticada e ao mesmo tempo acessível, dar voz ao eu que existe em nós. Em Mecânica, reitera sua obstinação em ir mais fundo, sem temer que seus pés não encontrem solo firme para pisar em segurança. Somente vai, e assim carrega junto seus leitores, que percebendo a determinação de seu condutor, deixam-se levar oceano adentro, ao fundo e avante, sem boias e nem máscaras de oxigênio.

Um grande feito, em minha opinião, especialmente em uma época superficial como é a nossa, na qual nos limitamos ao breve, ao óbvio e ao tolo. E é ali que nos afogamos, em águas rasas.

No entanto, tenha atenção, prezado leitor: não há, por parte do poeta, qualquer pretensão ou interesse em explicar o inexplicável, e nem mesmo encher o vazio de uma vida oca de significados. Thiago não busca racionalizar, participar ou compreender os relógios, contratos e convenções que o rodeiam. Não. O que predomina em sua obra é a observação atenta, porém desprovida de julgamento. A celebração da incerteza, da inquietação e do conflito; sem oferecer, no entanto, a sugestão de qualquer solução, saída, resposta ou posicionamento. Apenas a aceitação do inexplicável, sem submissão, com respeito e certa naturalidade.

Mecânica é um livro que traz mais perguntas do que respostas. Certeiro para estes tempos ligeiros, rasteiros e líquidos em que, tal e qual um mecanismo automático e desprovido de instinto e intuição, apenas nos movemos. Sem nunca sair do lugar.

 

 

* Jana Lauxen tem 33 anos, é editora e escritora, autora dos livros Uma Carta por Benjamin (2009), O Túmulo do Ladrão (2013) e O Duplo da Terra (2016). Ministra palestras, cursos e oficinas literárias, e é colunista dos jornais O Informativo Regional (Sananduva/RS), A Folha (Não-Me-Toque/RS) e Tribuna (Carazinho/RS), além de colaboradora da revista Café Espacial.

Publicou em mais de quinze coletâneas, e organizou treze, algumas em parceria com outros escritores. É responsável pelo selo Nascedouro, da Editora Os Dez Melhores.

Contatos: assinadojana@gmail.com / www.assinadojana.com

 

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