Três poemas de Fábio Reoli

FABIOPOETAANATOLE 300x201 - Três poemas de Fábio Reoli

Anatole Studio – 1968

 

 

TERNURA PISOTEADA ÀS SEIS DA TARDE

Porra de movimento desordenado
que desencadeia náuseas
até nos culhões da alma.
Eu sonhava com um opalão metálico
com grandes alto-falantes vomitando rock´n´roll,
minha garota do lado, os cabelos em chamas
contra o vento, e, no entanto,
me encontro coletado dentro desse coletivo,
protótipo de inferno sobre rodas,
quente e sujo como o asfalto por onde rasteja.
É sempre a mesma paisagem miserável,
mãos sujas, bocas sem dentes
e rabiscos feitos com spray no abstrato do concreto.
Rostos sem esperança. Cidade em discórdia
e a decadência premente de quem segue o mesmo caminho.
O relógio de pulso contando cada segundo para a grande explosão,
que chega cada vez mais rápido
pelas páginas amarelas desse apocalípse diário.
Do meu lado esquerdo e direito
alguns semelhantes esboçam um sorriso triste,
exalando um odor errante que faz sangrar meu nariz.
Sei que atrás de cada face, de cada fisionomia irônica,
existe também um bando de animais cruéis,
esperando só um impulso ou um instante de fraqueza
pra sorver o resto da força que trago comigo.
No fundo, bebemos do mesmo ódio.
Comemos as mesmas carnes que os cães vadios caçam.
Partículas estragadas de uma célula morta.
O metal pulsa. As têmporas também.
Alguém tosse até engasgar.
A prostituta desce em sua parada
com o batom borrado pelos solavancos.
Bêbados vão se consolar nos bares.
Outros enveredam seu destino incerto por vielas mal cheirosas,
debaixo da luz fria de mercúrio.
O motor grita no pé calejado do motorista
que se cala. Todos os dias.
Questão de sobrevivência.
E eu nos confins do ainda.
Vendo tudo que sobra,
do que sobra
de janela.

 

 

NOCAUTE

Não existem culpas, pecados que sobrevivam às madrugadas. Só os dedos acusam. O corpo sente. Livre. Acordei rastejando. Serpente de duas cabeças. Uma entrando e saindo através da neblina úmida. A outra nunca esteve. Um gemido estilhaçou a blindagem do silêncio. Sinopse de uma prece decorada, sem fé. Do prazer, a placa de “aluga-se” em letras desbotadas. Insistência em deixar branco o papel. Sem poesia. Ou bilhetes. Arrancaram a velha caixa de correio durante o sono. Nunca saberemos. Até nos blecautes os vagalumes teimam em se manterem acesos em seus voos suicidas. Depois, tudo se apaga.

 

 

ON THE ROCKS

O vento não sopra segredos com um passar de mão nos cabelos. Eu não sei de cor a sequência de números necessária pra te fazer ouvir as letras chiando no asfalto, ao meio-dia. Frases enjauladas na garganta e seu quase nome solto no bolso da camisa. Fiéis seguidores. Em cada esquina que meus pés me largam. As horas se perderam. No rastro sem volta da cauda branca do cometa que te guia. Racharam o violão talhado à canivete. A árvore. O copo. Onde seus lábios roubavam a última pedra de gelo. Nos olhos a imagem, a forma como chupava com maestria. Um ritual exótico pelos dois lados da boca. Até a explosão fragmentada de sensações úmidas espalhadas entre os dentes. Últimos vestígios de inverno se desfazendo no verão da língua. Lugar adequado pra desaparecer. De vez.

 

 

Fábio Reoli é apaixonado por jazz, artista urbano e cronista de boteco.
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