O retrato de Carlotta Valdes
Não sabiam os irmãos Lumière o que tinham inventado. A fantasia precede a realidade. Viagem à lua foi lançado em 1902, os sonhos alucinatórios de Verne e Wells, ou seja, sessenta e sete anos antes de o homem de fato pisar no satélite. Tudo é visão de sonho. O que vivemos em forma de presente é também um adiantamento simbólico do futuro? As coisas parecem se misturar: a anistia da fronteira.
Os irmãos Lumière não sabiam o que tinham inventado. Eu, por outro lado, não inventei nada que soubesse. Sento na poltrona do cinema vazio, as luzes se apagam. A vida toda lá fora. Sessão noturna. Clássicos dos anos 1940, 1950. Marlene Dietrich gigantesca na tela. Marlene Dietrich gigantesca em qualquer tela. Recuo na poltrona. Pequeno. Um corredor comprido: não vá por aí, tento avisar em vão. Aprisionada há décadas num rolo de filme, engrenagem enferrujada da narrativa. Eu, por exemplo, sei que depois sairei, caminharei pela rua deserta, chegarei cansado e dormirei sem sonhos. Eu acho.
A porta se abre no filme. A porta se abre na vida real, que é também imaginária. O vilão entra. A silhueta recortada contra a luz forte da tela, não posso ver o rosto da pessoa: clarão da caverna. Aos poucos sobe, de sobretudo e chapéu, senta-se ao meu lado: o cinema inteiro à sua disposição. Olho fixamente a tela, já não vejo mais nada. A mão do estranho toca a minha perna: choque elétrico: corpo de cena: corte de frame: levanto e corro pra saída. “stop”, grita Dietrich, paro e olho pra trás, o homem se levantara, vem atrás de mim: recupero o fôlego, abro a porta que dá para um estreito corredor de pedra. Avanço no sinistro.
Os meus passos ecoam ou são os passos do homem que me segue? Lá na frente a luz. Saio e me encontro onde? Uma rua deserta no começo do século XX. Talvez Londres. Eu todo em preto e branco. Ainda pressinto o homem que me segue. Sigo pelas ruas, por onde posso ir?
Marlene Dietrich argumenta com o bandido: tenta distraí-lo, sabe que a ajuda vem ao seu socorro. Seus olhos de pantera: sua pele clara brilhando no escuro: boca fulva seduzindo o espectador – esfinge – mistério.
Escondo-me num beco escuro, o homem vem no meu encalço. Uma pedra grande, pesada. Elemento cênico: a pedra é de isopor… mas eu acredito no peso e por acreditar a pedra pesa toneladas e eu sou forte o bastante para erguê-la. O homem passa, arrebento sua cabeça. Olho seu rosto deformado, me parece familiar. Não consigo atinar o nome. Sabe quando não sei o nome do ator e fico… aquele que fez par com aquela outra naquele filme daquele diretor que fez aquele filme que tinha aquele ator que tinha…
Dietrich se apavora: a deixa para a entrada do mocinho já passou. O relógio bate duas da manhã. A luz entra no cenário. O vilão tira o revólver do bolso e aponta para a mulher fatal, descrente da sua sorte: anos e anos preso à morte certa. O que mudou tudo de repente? A mulher grita.
Sigo um som ecoando por essa noite estranha. A casa destacada pela luz da lua. É pra lá que eu vou. Murmuro algo que não entendo.
O revólver brilha nos olhos de Dietrich, duas vezes mais mortal. O cano da morte: o túnel duplicado. O escuro no fim do túnel. Antes do tiro a porta se abre abruptamente: o milagre no último instante, os rostos se desfiguram de surpresa. Anticlímax do clímax.
Abro a porta o coração batendo que música é essa tocando na madrugada, alguma sinfonia de Beethoven: ignoro o insólito, tento me salvar da morte.
O bandido atira duas vezes no peito do invasor. Enquanto a cena se suspende, Dietrich some pelo corredor, escapa pela porta dos fundos. Sorte a sala estar vazia, o projecionista dorme na cabine.
Abro a porta: tudo veloz. O cenário antigo, o homem de arma na mão. Dietrich parada no lado oposto: o rosto assustado dos dois, o retrato de Carlotta Valdes na parede. A arma vira em minha direção. Pá. Pá. A morte: adeus.
A câmera foca no morto no chão: se são divinos os narradores com suas penas imperiosas: o crepúsculo dos deuses. A dobra na realidade: o fim alternativo: o gato de Schrödinger.
Na poltrona vejo o filme acabar: duas marcas fundas no peito – duas cicatrizes fictícias. O artista dói. Os créditos sobem: M. Dietrich, H. Bogart, O. Welles… entre os mitos meu nome surge, em mal-estar me levanto. Que horas são?
De novo compro o bilhete. Sento. Dietrich. O homem entra. Corro pelo corredor. Os tiros no peito. Um corpo que cai. O nome nos créditos. Labirinto. Esperarei mil anos até que alguém, de novelo na mão, mate o bandido antes que ele mate a mim. Até lá, o sonho de cera, o sol eterno da morte e da vida: pior que o fim, a sua ausência.
Caio Augusto Leite nasceu em São Paulo em 1993. Cursa pós-graduação na Universidade de São Paulo (USP) no programa de Literatura Brasileira, onde estuda a obra de Clarice Lispector. Tem dois livros publicados Samba no escuro (2013, Scortecci) e A repetição dos pães (2017, Editora 7Letras). E um de poemas ainda no prelo.
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