Reinvenção da Amélia
Nasci acuada.
Habitava entre as quatro paredes de um coração trancado por fora.
Era a perfeita mulher de verdade: Virgem, Mãe, Santa, Pura…
…muda, surda, paralisada.
Alma roxa das pancadas da vida, do silêncio imposto. Resignada
seguia pela estrada afora esperando o final feliz que o cavaleiro
não trouxera no cavalo branco, todo coices e ferradura.
Foi num coice mais forte que acordei,
a pele arrebentada, ossos liquefeitos,
Caos de mulher informe, refiz-me no barro de Gaia,
Ungida com água e sangue.
Pari-me de meu próprio ventre refeita em cores,
ofuscando a cegueira dos misóginos mausoléus.
Mundo que não menstrua, que não sabe a dor do parto:
Não se aproxime que eu mordo. Não me bata que eu reajo.
Ninguém me bota no canto, nem diz pra eu ficar calada.
A contida, a comedida, a boazinha, a manhosa?
Morreu ontem, soterrada numa avalanche de dor
Renasci bagunçada, livre, descabelada,
onda furando pedras, raio cortando o ar.
Rompi grilhões, cortei cordas com os dentes,
mordi meu próprio cabresto e fiz o dono engolir.
Emudeço o que era ordem, desacato autoridades,
descontruo paradigmas e receitas de mulher.
Amélia reinventada, reconstruída nos escombros da opressão,
Dos cala-a- boca, vai pra cozinha, lava as cuecas, traz a janta, mulher!
Mulher? Onde? Amélia era mula, besta da carga, obrigada a ser puta na cama,
Mesmo se não quisesse.
Agora não!
Basta!
Amélia se reiventou fera. Livre.
Faça seu prato. Lave suas cuecas sujas.
Lave a louça. Me pague o jantar.
Ou vá embora. Some. Sou eu quem pago a casa.
Tome seu rumo, pegue a estrada e leve na trouxa,
De lembrança, um reinventado dito popular:
Cala a boca já morreu. Quem manda na vida de Amélia, sou
Eu!
ELEGIA À ILUSÃO
Meu carro.
Minha casa.
Meu emprego.
Meu dinheiro.
Meu cargo.
Minha escola.
Meu governo.
Meu marido.
Minha mulher.
Meus filhos.
Meu pai.
Minha mãe.
Meu amor.
Minhas coisas.
Meus bens.
Meu.
Minha.
Me.
Pra Mim.
EU.
Um dia morremos.
A morte é de cada um. De mais ninguém.
Irônica posse que queremos rejeitar
num mundo em que tudo é ilusão e empréstimo.
Se há vida após ou não,
tanto faz.
O EU construído durante o lapso temporal chamado vida
desfaz-se com um só “tic” do relógio.
Em um nano de segundo, arrebenta o miocárdio
e EU, não mais.
Massa de água, carne, ossos, corroída,
restos adubando a terra.
O poder muda de mãos.
A fama sobrevive até o próximo astro
raiar com as manchetes do dia.
Trocam-se os móveis da casa,
pintam-se as paredes
de outra cor,
o carro é ferro velho,
os viúvos casam de novo,
os filhos viram pais,
pais viram avós
e filhos são netos.
Avançamos a cada degeneração
no carrossel de vã ilusão,
cadáveres perambulantes, joias falsas
de fugaz e pequeno brilho emprestado que se esvai
A noite eterna da alma esquecida em carnes que apodrecemos com o passar das horas.
A matéria vive a menor.
“Nunca mais” é certo.
E um dia, num átimo que não se adivinha,
Tudo é pó e cinzas
E nada mais.
Nem a ilusão.
SONATA
O PIANO FURIOSO
AS NOTAS MARTELANDO CONTRA OS DEDOS
TRISTES, LÚGUBRES, PESADAS
AS TECLAS BRANCAS, NEGRAS
OS GRAVES CONTUNDENTES, IRASCÍVEIS
OS AGUDOS COMO ESGANIÇADOS
LAMENTOS. NÃO.NÃO. NÃO!
O BARULHO DO MAR CONTRA AS PEDRAS
A BRISA FRIA PELA JANELA
FURIOSO, FURIOSO…
PORQUE NÃO SOAVA MAIS ALTO?
OS DEDOS INCHADOS CONTRA AS TECLAS
OS PÉS NOS PEDAIS
DESAFIANDO A GRAVIDADE
QUERENDO ENTERRÁ-LA
UMA SONATA AO LUAR
MAS NÃO HAVIA LUA
A CLARIDADE SE FORA COM UMA NÉVOA
E NUVENS NOTURNAS
UM SOTURNO OLHAR DE SOSLAIO
ALGUÉM AÍ?
NINGUÉM.
MANSÃO VAZIA COM AS JANELAS ABERTAS
CONVIDATIVAS.
ENTRE. ENTRE. ENTRE!
AINDA, NINGUÉM.
ENTÃO COM O SÚBITO FIM
EM DESCOMPASSO COM A NOTA MAIS LONGA
DURADOURA
QUE NÃO CHEGOU A ECOAR
O SANGUE ESCORRENDO ENTRE AS TECLAS
O BAQUE SURDO DO CORPO MARMÓREO
SOBRE O PIANO
FURIOSO
NÃO MAIS.
Yndiara Macedo tem 49 anos, é carioca e autêntica. Escreve prosa e poesia desde os 9 anos. Já ganhou concursos literários brasileiros. Escreve o que lhe dá prazer. Não tem compromisso com estilo, estética ou crítica.O valor é ser feliz.
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Ótima pegada lírica. Mulher que faz saber o que é ser mulher. O quanto de sangue, de sorrisos e de canseiras. Sei que você sabe, Yndiara. Sei o que você é e o quanto sou feliz pelo seu talento e pelo caótico intento da razão que lhe descobriu a alma. E fez-se mulher!
Gratidão ao meu “muso”, interlocutor, companheiro. Beijo no coração.
Amei Yndi! São lindos!♡
Gratidão, amiga!
Muita inspiração e muita sensibilidade, yndi!
Obrigaduuuu, Aninha!
Yndiara sempre com a poesia afiada e nos presenteando com sua escrita. Sou fã
Meu Mestre Éder! Muito sensibilizada com seu elogio!
Meu Mestre Éder! Muito sensibilizada com seu elogio! Gratidão!