Morte e vida involuntária
A noite lentamente se esvaía
e aos poucos, recolhia
a sua manta negra, estendida sobre o céu
O céu rapidamente empalidecia
e aos poucos, tingia
de rubro o horizonte, precipitando o sol
O sol imponente se erguia
e aos poucos, refletia
seu brilho nas casinhas da comunidade
A comunidade que nem bem dormira
e aos poucos, levantara e recordava o acontecido:
-Foram tantos os ruídos!
dos projéteis, o estampido
das pessoas, o gemido
dos fiéis, o pedido
para que cessasse o conflito
e fossem silenciados os fuzis
Os fuzis ainda fumegavam, lá pelas cinco
horas daquela manhã, hora em que
todo homem de bem se prepara para a labuta
A labuta nem bem começara, e no entanto
já se apressara, avexado,
para sair de casa, adiantado, o Severo.
O Severo, pai de família, trabalhador,
contas a pagar, dois ônibus a pegar,
café da manhã para tomar, e a mulher para escutar
Escuta a sua mulher, Severo! Não saia de casa
justo agora, pega outro ônibus
em outra hora! Pois que mal acabou o entrevero
e ainda há perigo lá fora
Lá fora já estava o Severino que não tinha
mulher para escutar, mas com sua vara de pescar,
saía todo o dia ao sereno, para pagar as suas contas
e sustentar o seu filhinho pequeno
Pequeno era o caminho de sua casa até as margens
do providencial rio em que pescava
como também pequeno seria para Severino
o dia que apenas começava:
um disparo leviano, num ato de covardia
(pois que todo disparo é covardia,
o aço feroz destruindo a pele macia)
fez Severino cair e de calor, sentir frio
Frio era o jeito diferente que Severo
começou aquela manhã tão fugidia:
preso aos muros de sua casa, perdia
os ônibus para o trabalho, enquanto Severino,
seu filho que trouxe consigo lá do nordeste,
inerte ali bem perto, Jazia
Jazia a bordo de uma carroça que ia,
puxada por mãos caridosas
e entre as vielas fugia
em busca de ajuda em hora tão dolorosa
Dolorosa foi a hora em que se via
o bravo Severo, de olhos marejados
debruçado inerme sobre o filho,
desesperança e desassossego,
em frente à delegacia
Em frente à delegacia uma
aglomeração de curiosos aparecia
para testemunhar a dor de um pai
inconformado, diante do seu filho
que aos poucos, morria
Morria aos poucos a curiosidade
e aos poucos, aquela gente se evadia,
pois era como se nada diferente,
naquela hora acontecia,
– Para que surpresa, minha gente
era apenas mais um que caía!
Caía sobre a mortalha negra do asfalto
e sobre o bueiro um filete grosso pendia,
tingindo de rubro a calçada,
era Severino que se esvaía!
– Esvaiu-se! Morte involuntária, alguém dizia!
Mas toda morte é involuntária…
quem planeja morrer senão os suicidas?
os inocentes só planejam (sobre)viver
e pagar as contas do dia-a-dia
O dia já ia alto quando apontava
na esquina da rua e aparecia
depois da perícia, o rabecão
para levar aquela carcaça já tão fria!
Tão fria de vida involuntária
de quem viveu e não sabia
que viver e morrer involuntariamente
é o tributo que se paga, compulsório
a vida toda, todo dia!
Be the first to comment