Três poemas de Adam Flehr

Adão Flehr old photo 4 1 - Três poemas de Adam Flehr

 

 

Morte e vida involuntária

A noite lentamente se esvaía
e aos poucos, recolhia
a sua manta negra, estendida sobre o céu
O céu rapidamente empalidecia
e aos poucos, tingia
de rubro o horizonte, precipitando o sol

O sol imponente se erguia
e aos poucos, refletia
seu brilho nas casinhas da comunidade

A comunidade que nem bem dormira
e aos poucos, levantara e recordava o acontecido:
-Foram tantos os ruídos!
dos projéteis, o estampido
das pessoas, o gemido
dos fiéis, o pedido
para que cessasse o conflito
e fossem silenciados os fuzis

Os fuzis ainda fumegavam, lá pelas cinco
horas daquela manhã, hora em que
todo homem de bem se prepara para a labuta

A labuta nem bem começara, e no entanto
já se apressara, avexado,
para sair de casa, adiantado, o Severo.

O Severo, pai de família, trabalhador,
contas a pagar, dois ônibus a pegar,
café da manhã para tomar, e a mulher para escutar

Escuta a sua mulher, Severo! Não saia de casa
justo agora, pega outro ônibus
em outra hora! Pois que mal acabou o entrevero
e ainda há perigo lá fora

Lá fora já estava o Severino que não tinha
mulher para escutar, mas com sua vara de pescar,
saía todo o dia ao sereno, para pagar as suas contas
e sustentar o seu filhinho pequeno

Pequeno era o caminho de sua casa até as margens
do providencial rio em que pescava
como também pequeno seria para Severino
o dia que apenas começava:

um disparo leviano, num ato de covardia
(pois que todo disparo é covardia,
o aço feroz destruindo a pele macia)
fez Severino cair e de calor, sentir frio

Frio era o jeito diferente que Severo
começou aquela manhã tão fugidia:
preso aos muros de sua casa, perdia
os ônibus para o trabalho, enquanto Severino,
seu filho que trouxe consigo lá do nordeste,
inerte ali bem perto, Jazia

Jazia a bordo de uma carroça que ia,
puxada por mãos caridosas
e entre as vielas fugia
em busca de ajuda em hora tão dolorosa

Dolorosa foi a hora em que se via
o bravo Severo, de olhos marejados
debruçado inerme sobre o filho,
desesperança e desassossego,
em frente à delegacia

Em frente à delegacia uma
aglomeração de curiosos aparecia
para testemunhar a dor de um pai
inconformado, diante do seu filho
que aos poucos, morria

Morria aos poucos a curiosidade
e aos poucos, aquela gente se evadia,
pois era como se nada diferente,
naquela hora acontecia,
– Para que surpresa, minha gente
era apenas mais um que caía!

Caía sobre a mortalha negra do asfalto
e sobre o bueiro um filete grosso pendia,
tingindo de rubro a calçada,
era Severino que se esvaía!

– Esvaiu-se! Morte involuntária, alguém dizia!
Mas toda morte é involuntária…
quem planeja morrer senão os suicidas?
os inocentes só planejam (sobre)viver
e pagar as contas do dia-a-dia

O dia já ia alto quando apontava
na esquina da rua e aparecia
depois da perícia, o rabecão
para levar aquela carcaça já tão fria!

Tão fria de vida involuntária
de quem viveu e não sabia
que viver e morrer involuntariamente
é o tributo que se paga, compulsório
a vida toda, todo dia!

 

 

O Sete
 
Se naveguei pelos sete mares,
e te busquei no sétimo céu,
mergulhei as sete mil léguas,
e descobri um segredo para velares:
depois do sete, o infinito…
 
Se perdoei setenta vezes, amor
e te esperei depois de sete dias retornar
o preço cobrado em penhor
foi liquidado sem reclamar
com uma de minhas sete vidas…
 
Pois tudo que começa
tem seu ciclo e finda
em sete horas,
sete dias,
sete luas,
sete meses,
sete ruas,
sete versos,
sete reses…
 
Dividi meu coração em sete pedaços
e os enterrei em sete cantos
para que um deles, dentre tantos
encontrasse a felicidade…
 
Dividi a minha casa em sete cômodos
e habitei cada um com diferentes devaneios,
convivi com meus temores e anseios,
para fugir da solidão…
 
Dividi o romance em sete capítulos
e fiz do girassol o meu bem-me-quer,
despetalei as folhas sem restar uma sequer
e por fim não achei o bom final…
 
Dividi o amor em sete faces
tendo cada qual seu indizível
e esfíngico enigma a interrogar-me…
E por mais forte que me aches
abandonei a máscara invencível
miserável e derrotado, respondi:
 
– devora-me, pois já não me decifro mais…
 

 

Não aconteceu nada de novo hoje
Desde a última vez em que a viu
nenhuma novidade se revelara:
fechou as portas,
abriu as janelas,
fingindo assistir
ao tempo que fingidamente, não passara
e por ser tão claro,
indispensável e óbvio
pensou em como não sentir a dor
que extemporaneamente o vazara
apartou-se da pena, recolheu os pedaços,
dos seus próprios traços
desbotou a cor,
calou o grito
e o rufar no peito, solenemente abafara
Mas o tempo é grande, inexorável e pródigo
e balança ao vento emoldurado
pela janela à beira-mar,
fingindo não passar…
Fingindo não notar o ato
de retornar à pena, baixá-la ao papel
e então rabiscar:
“Não aconteceu nada de novo, hoje…”
Desde a última vez em que a viu,
eis o que lhe resta:
Sorri à janela, desafiando o vento
que revida ao perguntar:
Ela vai retornar?
 
 
 

 

Adam Flehr – brasileiro, casado, nascido no século passado, em Salvador, a cidade-luz, a baía de todos os santos, onde os portugueses primordialmente fincaram a sua cruz. 
Trazido há quase quatro décadas para a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde cresceu, estudou, graduou-se em Administração, apurou seu gosto pelas artes em geral, em especial por música e literatura. 
Escritor bissexto,  escreve regularmente entre solstícios e equinócios e guarda seu legado de escritos no blog:  HTTP://prosaeletronica.blogspot.com     
Confessadamente seguidor dos mestres brasileiros Quintana, Vinicius e Drummond, é entusiasta da literatura portuguesa, de Saramago, Eça de Queiroz e Pessoa.   
 
Nas horas vagas, entre o exercício de suas atribuições profissionais e o prazer da escrita se dedica a obras assistenciais de caridade, seguindo o preceito de sua crença.

 

Please follow and like us:
Be the first to comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial