7 contos de réus – Silvana Guimarães

 

Adelaide Fotop 300x300 - 7 contos de réus -  Silvana Guimarães

7 contos de réus – silvana guimarães

 

al punto

Qualquer maneira letal serviria.
Mas escolheu lá, do alto do viaduto, às onze e meia do último dia.
Olhem ao menos uma vez para mim.
Um desconhecido tenta impedi-la.
Não me toca, meu bem, sou ferida aberta.
Faz o sinal da cruz, fecha os olhos e salta.
Embaixo a multidão espera, ávida: jantar para mil talheres.

 

 

romã

Colha o fruto antes que apodreça, todos os lábios gemiam à francesa. A revista avisava: homem bonito produz esperma melhor. Mas Perséfone ignorou o conselho, a outra dizia que os feios fodem melhor. Nem se importou quando ele devorou o tagliarini a bolognesa, a gota do tinto escorrendo pelo canto esquerdo da boca aberta. Na vidraça do Maksoud Plaza, a cidade encoberta pela bruma trop noir, advertia: mulher chique deve dar a um Bogart. Chafurda-se assim na massa, o que não fará numa bucetinha? De trepada em trepada, um passo em falso e o amor. Dele, guardou a imagem do rosto enquadrado nas suas pernas em leque. E na partida, o olhar linear, contabilizando a presa do dia. (Coincidência? Naquela noite, exatos sete meses depois, ele ligou. Falou em saudades, convidou-a para sair. Ela não teve tempo de responder. O travo na língua, o braço dormente, o copo espatifado no chão. Pela janela escancarada, a lua transitando em Gêmeos anunciava: momento excelente para a fatalidade.)

 

 

aisthetike

No parapeito, São Paulo enfim! a seus pés.
O pulo, a queda, o baque.
A pincelada violenta e definitiva do vermelho puro no preto e branco da calçada. A tragédia e a comédia no esgar de sorriso. As pernas em perfeito demi-pliés. As mãos retendo o último movimento do adagietto. O espanto — origem do poema — no olho.
Ainda assim leva a dúvida, se não seria a morte em Veneza mais bela.

 

 

ninharia

Órfã de pai e mãe, acidente, aos cinco anos. Perdeu o único irmão aos quinze, overdose. Aos vinte e cinco, enterrou o filho caçula, desnutrição. Aos trinta e sete, o marido, cirrose. Com quarenta e um, o primogênito, queima de arquivo. A filha do meio, aos quarenta e oito, aids. Não resistiu à morte do gato cinza, velhice, cinquenta e sete. Tomou veneno. No velório as pessoas lamentavam: tão cedo e por tão pouco.

 

 

aflitos

Entre a Sé e a Luz, pouco antes da ave-maria, um menino de rua se mata com álcool e fogo. Seu corpo minguante se contorce à beira do meio-fio. Intocável. Ardendo dentro dos olhos grandes da curiosidade pública. Um homem de idade avançada se benze e murmura, atônito: meu deus, criança se matar, final dos tempos. Depois, vai embora. Levando no peito um medo novo — muito maior do que o outro que sentia do menino, quando ele vivia.

 

 

latomia

De novo esta história começa numa noite escura de março, a lua escorregando devagar pelo céu. Até debruçar-se sobre o jardim e cintilar: um lago preso na grama. G. viu a noite a lua e o lago por entre as taliscas da janela, como se acordada. Ela não viu que arrasta os pés nos tacos que formam desenhos no chão. Que abre a porta do armário, revira uma gaveta, destampa uma caixa, espalha papéis. A carta. Por que o nosso amor tem que doer tanto ele perguntava no fim da única que lhe escreveu. Ele me amava, ela não viu. Que afaga o papel velho, alisa as letras. As palavras incapazes que ela engole nas noites de lua nova, como se vidro miúdo. O ritual sangrado. Silêncio e angústia explodindo na solidão do lugar. Nunca sou, serei, seremos. Amanhã é domingo de abril. O caminhão de lixo não vai passar na rua. O sol vai entrar esfarelado pelas taliscas da janela, como se purpurina num quarto ainda escuro. Até iluminar o pulso aberto da mulher: a flor da paixão só tem espinhos. A vida é incurável, ela não vê. Que dorme o sono eterno, como se ontem anos atrás.

 

 

ícaro suburbano

Entre a janela e o chão, ouviu, por último:
— Mãe, olha o passarinho.

 

 

Silvana Guimarães (Belo Horizonte/MG). Socióloga, escritora. Participou de algumas coletâneas, entre elas, duas que organizou: 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015), Dedo de Moça — Uma Antologia das Escritoras Suicidas (Terracota, 2009), Hiperconexões — Realidade Expandida Vol. 2 (Org. Luiz Bras, Patuá, 2014) e 1917-2017 — O Século sem Fim (Org. Marco Aqueiva, Patuá, 2017). Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte e do site Escritoras Suicidas. Vive em Belo Horizonte.

Please follow and like us:
This Article Has 2 Comments
  1. Virginia Finzetto Reply

    Silvana, sempre surpreendente. Adorei!

  2. Yara Camillo Reply

    Silvana Guimarães e seus textos impressionantes, seu olhar raro e certeiro.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial