alegria
● eu era uma menina feliz ate 10 11 anos ●
● então fui levada por minha mainha ●
● vendida por meio pacote ●
● de cedulas ensebadas e muito amarelas ●
● vendida como se vendem galinhas ●
● na feira com pernas amarradas ●
● depois me jogaram num quarto mofado ●
● com cheiro de leite podre de leite ●
● velho de leite duma vaca morta ●
● desde então tenho vivido nua e com frio ●
● nesse quarto nesses quartos na casa ●
● nos corredores desse lugar ●
● nua quando chegam nua quando se vão ●
● nua quando acordo e nua quando vou ●
● dormir nua quando janto e almoço ●
● ate quando sonho comigo tou nua ●
● nessa casa ou fugindo dessa casa nua ●
● como sempre nua pelas ruas e praças ●
● tomo todos os banhos q me mandam ●
● tomar faço todas as coisas q me mandam ●
● fazer e tou sempre nua nua demais ●
● quando conversam comigo quando olham ●
● quando batem nas paredes e nas camas ●
● quando batem sobre as mesas ●
● tou sempre nua sempre nua demais ●
● palida com essas olheiras esse cabelo liso ●
● tão magra magra demais e sempre nua ●
● desde os 10 11 anos porq não sei o tempo ●
● o quanto tempo tou aqui magra e nua ●
● nua demais por dentro de casa ●
● nua como as galinhas na feira ●
● com pernas amarradas asas cortadas ●
● dormindo no chão imoveis quase mortas ●
● sem falar porq acho q não sei mais falar ●
● em silencio como se essa fosse minha ●
● alegria minha forma de viver vestida ●
● quase uma maneira doida de perguntar ●
● pra mim mesma se a vida pode ser mais ●
● mesmo tendo sido sempre esse nada ●
● vendida como se vendem galinhas na feira ●
● tão magra magra demais sempre nua ●
● desde os 10 11 anos porq não sei o tempo ●
*
tagliaterre
● não devo dizer meu odio ●
● da arte de tagliaterre com o violino ●
● sua profunda sutileza e força ●
● meu horror quando ouço ele tocar ●
● eu q treinei desde criança sem cessar ●
● pra ser o deus do violino e da musica ●
● ouvindo tagliaterre tremo e choro ●
● sei q jamais serei o deus do violino ●
● sei q jamais chegarei ate ali e alem ●
● onde tagliaterre vai e sempre avança ●
● avança e num redemoinho de repente ●
● se torne maior mais sublime infinito ●
● choro pela divindade de tagliaterre ●
● choro por ser apenas um violinista ●
● a plateia delira e dança nesse delirio ●
● enquanto eu choro arranco cabelos ●
● saindo pelas ruas escuras berrando ●
● sentado na beira do rio soluçando ●
● com certeza tagliaterre na gloria ●
● tanto trabalho tanto desejo e sonho ●
● mas é tagliaterre q tem tudo e mais ●
● o rio agora chama agora enquanto ri ●
● eu uivo nada devo a vida e morrer ●
● não é ma ideia e tagliaterre sim ●
● deve viver e brilhar ate se fundir ●
● num violino da mais pura madeira ●
● eu no fundo do rio tocando os dedos ●
● no frio das pedras o fluxo sem sentir ●
● quem sabe assim ateando o remate ●
● pedras e lodo em vez de cordas ●
● o grande rio de mijo como violino ●
● eu esqueça tagliaterre e divino ●
● crie uma musica suprema sublime ●
● pros esquecidos e derrotados ●
● pela vida com a beleza da morte ●
*
tripalium
● o trabalho devorou ate eu não ter um nome ●
● nem cara nem identidade o trabalho fudeu ●
● minha luta minha familia a mulher e os fetos ●
● meus meninos minha casa o trabalho comeu ●
● todas as moedinhas e os miudos o trabalho ●
● devorou minha calça a camisa a cueca e o gozo ●
● devorou minha unica sandalia de couro e prego ●
● o trabalho fudeu devorou e engoliu o cinturão ●
● furou como cupim meu chapel o trabalho fudeu ●
● minha altura meu peso a cor dos meus olhos ●
● a cor dos meus cabelos o trabalho queimou ●
● os pelos os pentelhos inda mais a minha carne ●
● minha lingua é so e mal a lingua do trabalho ●
● a lingua violenta e pura perversa do trabalho ●
● o trabalho me adoeceu e vomitou remedios ●
● não sumiram nem as dores nem as doenças ●
● o trabalho faz meu mijo feder e apodrecer ●
● como amargo e gorduroso fede o chorume ●
● q escorre das fabricas e jogam nos rios no mar ●
● o trabalho fudeu a casa a familia dos meus avos ●
● fudeu meu pai meus irmãos e minha mãe ●
● o trabalho me deixou assim faminto o trabalho ●
● devorou minhas coisas meu pente meu lenço ●
● destruiu minhas unhas enferrujou meu canivete ●
● a tesoura a faca cariou e partiu meus dentes ●
● meu caralho não sobe ha tanto tempo q se subir ●
● o coração se estraçalha porq caralho e grelo ●
● molhados so podem subir se o trabalho mandar ●
● o trabalho devorou meu cão meu gato e o rato ●
● qeu criava escondido do gato e do cachorro ●
● o trabalho fudeu arvores flores e abelhas ●
● o trabalho devorou as mesas as cadeiras ●
● o trabalho devorou meu pão e a farinha ●
● bebeu minhas lagrimas depois cuspiu longe ●
● dentro das latrinas nos esgotos nos vagos ●
● o trabalho fudeu minha infancia o trabalho ●
● fudeu minhas fugidas meus tios e primos ●
● o trabalho fudeu meus amigos e risos ●
● o trabalho fudeu o canto dos cantadores ●
● o trabalho fudeu a multidão comeu o povo ●
● o trabalho fudeu os sonhos e a punheta ●
● o trabalho devorou estradas e sombras ●
● o trabalho devorou a terra onde duramos ●
● comeu devorou e fudeu minha cidade ●
● o trabalho cagou na agua viva agora morta ●
● vendeu o mar esmagou tudo q vivia e gostava ●
● queima favelas toda noite com meus iguais ●
● em grandes fogueiras na loucura dos barracos ●
● pra fazer arranhaceus por moedinhas e lascas ●
● o trabalho fudeu ate o q eu nunca soube dizer ●
● nem pensar nem desejar nem olhar nem sentir ●
● o trabalho fudeu o suor o cheiro das mulheres ●
● os fins de semana a agua ardente transparente ●
● pra esquecer q o trabalho so faz fuder e devorar
● ate não se ter o q fazer o q fazer o q fazer ●
● o trabalho comeu os minutos e a vergonha ●
● o trabalho so deixou essa madrugada ●
● esse trem esses passos essa bicicleta velha ●
● esse onibus aos pedaços esse aperto essa dor ●
● essa noite pelas ruas entre esterco e buracos ●
● o trabalho fudeu o sono meu sono meu sono ●
● o trabalho fudeu a alegria a brincadeira ●
● fudeu as filhas todas elas agora são putas ●
● o trabalho fudeu meu deus minhas festas ●
● meu tempo minhas forças meus jogos ●
● o trabalho devorou a beleza e a beleza ●
● a beleza de tudo e de todos a beleza ●
● o trabalho humilha os q não trabalham ●
● como se não trabalhar desonrasse respirar ●
● o trabalho desfibra fibra por fibra o coração ●
● o trabalho fudeu tudo q se move o trabalho ●
● não dorme mas sonha e assim cria monstros ●
● a razão a verdade a lei a policia os manequins ●
● tudo isso isso ao redor q gargralha sem rir ●
● o trabalho fudeu tanto q so pode gargralhar ●
● enquanto todos olham como se vivessem ●
● mas o trabalho ensinou q nos não existimos ●
● o trabalho fudeu ate os dias não nascidos ●
● o trabalho fudeu nessa guerra minha paz ●
● o trabalho fudeu meus dias com suas trevas ●
● o trabalho fudeu as estações com o inferno ●
● o trabalho fudeu e devorou meu silencio ●
● o trabalho devorou meu medo da morte ●
● o trabalho ensinou q tudo ja é morte ●
● ensinou q nessa morte é tudo deles ●
● tudo saqueado pelos donos do trabalho ●
● ensinou q esse nada fica sempre cheio ●
● de tudo q eles fuderam tudo q devoraram ●
● pra gastar com brechas com inuteis e bufas ●
● o trabalho é coveiro q so enterra gente viva ●
● o trabalho ensinou q tudo ja é morte ●
Alberto Lins Caldas publicou os livros de contos “Babel” (Revan, Rio de Janeiro, 2001), “gorgonas” (CEP, Recife, 2008); os romances “senhor krauze” (Revan, Rio de Janeiro, 2009) e “Veneza” (Penalux, Guaratinguetá, 2016), e os livros de poemas “No Interior da Serpente” (Pindorama, Recife, 1987), “minos” (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2011), “de corpo presente” (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2013), “4×3 – Trílogo in Traduções” (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2014) com Tavinho Paes e João José de Melo Franco), “a perversa migração das baleias azuis” (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2015), “a pequena metafisica dos babuinos de gibraltar” (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2016). Blog: www.poemasalbertolinscaldas.blogspot.com.br
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