Uma Poética da Psicologia Imaterial e Seus Retratos Efêmeros, Mateus Melo Machado

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crédito: Ana Meireles

 

Uma Poética da Psicologia Imaterial e Seus Retratos Efêmeros

 
Por Mateus Melo Machado
“O pequeno príncipe atravessou o deserto e encontrou apenas uma flor”
– Antoine de Saint-Exupéry

 

 

 
A poética singular de Jean Narciso Bispo Moura vem sendo urdida com a trama do encadeamento das palavras, da busca do sentido pessoal na representação do universo e da construção da metáfora no cotidiano. Tudo dentro de uma lógica imprecisa, esquadrinhando assim um tecido de estranhamento imagético.
A professora e filosofa Lúcia Helena costuma dizer que na verdadeira Poesia nós encontramos a Filosofia. A lógica de Jean Narciso Bispo Moura é apresentada por um viés filosófico que vai contra o próprio Logos (do grego, vem do verbo Légo; pensar, raciocinar), tradicionalmente usado na filosofia para argumentar, fundamentar, qualquer conceito ou pensamento de maneira lógica. Tenho a impressão que o poeta tenta unir Mythos (narrativa subjetiva) e sua antítese Logos (discurso objetivo, racional), levando a leitura de um extremo ao outro.
Se a relação do poeta com a Filosofia e a razão extrapola as próprias leis da lógica, com a Poesia e a mente imaginativa não parece ser menos conflituosa. Jean sabe que é vaidade das vaidades quando o poeta quer ser maior que a Poesia, restando apenas o desprezo das Musas.
Indo além, o poema “Contramão” (de Retratos Imateriais), sinaliza o conflito entre as gerações de poetas e o próprio cânone. Em “Correio Eletrônico” há uma sutil negação ao cânone (Drummond e Bandeira), mas o poema finaliza com certa ironia: “brincamos de verso/ quando às cinco da tarde/ as nossas mães interrompem a brincadeira”. As mães são as Musas, aqui o poeta confessa total dependência, se colocando, ao lado de outros poetas, como criança, declarando a sua falta de maturidade, pois ele mesmo sabe que em se tratando de Poesia somos todos imaturos, aprendizes, faça parte do cânone ou não.
O poema “Metacápsula” que inaugura o livro “Psicologia do Efêmero”, diz: “Põe nos meus tristes espetáculos/ de fórceps ao parir a palavra”, nos revelando que o poeta tem consciência que o fazer poético dói. Parir o verbo é muitas vezes e de muitas maneiras, dolorido. Parir a palavra exige responsabilidade. É também trabalho artesanal, trabalho pesado, “Trabalho de Mineiro”, e mesmo o poeta trabalhando o verso, a palavra, com afinco, por mais fundo que ele cave, não será suficiente, posto que a Linguagem é traiçoeira.
No poema “Desespero Temporal”, que abre o livro “Retratos Imateriais”, temos um exemplo de inversão do senso comum no verso; característica que se repete na obra de Jean:

 

“o tempo envelhece na pele da humanidade”

 

Dentro do senso comum o verso poderia ser escrito da seguinte forma:
“a humanidade envelhece na pele do tempo”
E meio a tudo isso resta ao poeta perverter ainda mais o senso comum, materialista; daí a estranheza.
Também penso que a primeira chave para adentrar na poética de Jean Narciso Bispo, como bem afirmou o poeta e crítico literário Fabiano Fernandes Garcez, é a metalinguagem. É entender que a metalinguagem é a tentativa de organizar a linguagem dentro da alma.
O belíssimo poema “Saldo Incógnito” (Psicologia do Efêmero) é sobremaneira revelador:

 

  “Basta-nos o decréscimo de dias 

de um saldo incógnito

para que passar metade

de uma vida

pensando noutra vida”                                                                                    

 
                                                                                                                                                           

O resultado do saldo será revelado no final, mas para o sustento da vida é exigido o exercício da fé, para isso é necessário viver o presente com a esperança no futuro.

 
“alimentando-se como um glutão na confeitaria      

da palavra.    

Conclamo botar o sobrenatural nas forças dos braços

 
ir avante”                                                                                                                                                                                                  

Viver apenas da letra é viver uma vida estéril, abrindo um paralelo com 2 Coríntios 3:6 “…porque a letra mata, mas o espírito vivifica”. A letra é o “ministério da morte”, isso vale tanto para a Lei Mosaica como para o aprisionamento da Poesia em regras ou formas rígidas (as tábuas da Lei do Cânone) e muitas vezes, vazias de inspiração; pois houve um desgaste ao longo do tempo; é quando as velhas roupas já não servem mais; a linguagem é caprichosa. Por isso foi necessário uma Nova Aliança. A palavra precisa de sopro para receber a vida, quando isso acontece o poeta se torna instrumento de cura; a cura acontece pela linguagem. Vale lembrar a poeta mexicana Maria Sabina. Tal sopro é a inspiração, fruto do espírito. Por isso o sobrenatural é alimento necessário para “ir avante”, ir além dos tolos questionamentos e das filosofias inúteis.

 

ciente de que não estamos distante 

da magnitude da flor e do cacto

 

Se a “magnitude da flor” é a representação do Belo e da Verdade, a magnitude do cacto se manifesta como representação da fonte de alimento capaz de matar a nossa sede quando experimentamos o deserto (da alma, do mundo, das sociedades), e ele também nos da a visão para enxergar além da matéria, pois ele armazena em seu interior água pura. Quando bebemos dessa água alcançamos o sobrenatural, aí percebemos que pelo espírito a distância é só mais uma ilusão. A Física Quântica nos fala sobre o emaranhamento quântico, o entrelaçamento de partículas à distância.
O elemento água é usado pelo poeta como metáfora e símbolo aparecendo explicitamente nos poemas “Fiat Lux” e “Rio Heraclitiano” (Psicologia do Efêmero); como já aparecera antes em “Memórias Secas de um Aqualouco”. Tal elemento é mantido no livro seguinte (Retratos Imateriais), os poemas “Águas e Remos” e “Os Peixes” são dois exemplos. Mostrando que, em um mundo ultra-materialista, o poeta luta com a tímida crença no sagrado; ainda assim professa o milagre da vida. Em “Galáxia” ele novamente reafirma sua fé; tudo foi feito pelo Verbo.
No poema “O Verbo”, o processo de criação poética é sexual, por isso mesmo espiritual. Não importa; ambos os processos, biológico e sobrenatural, são criativos, são atos sagrados; isso resulta em Metanoia; o ato profano acontece quando a linguagem deturpa o que há de mais belo no humano.
O poema “Admoestação” fala da sedução verbal – “as palavras são iscas”. No relacionamento romântico, diante da sedução verbal, se não há inspiração, resta apenas sofrer calado. Porém, o poeta se coloca na pele de Jacó, o escolhido de Deus. Mesmo assim ele corre o risco de perder a voz diante de uma Raquel que seduz pela palavra.
Os livros “Psicologia do Efêmero” e “Retratos Imateriais” se inter-relacionam, se completam, se justificam e se afirmam entre si. O poema “Fogo Inadequado”, que fecha o último livro, é conclusivo: “às vezes escrever poesias é como ter nas mãos um fogo inadequado”.
Poesia é fogo inadequado porque é um fogo roubado dos céus (dos deuses ou dos anjos), não pertence ao humano; poetas apenas dão forma ao barro como faz o artesão, a essência está além do tempo e espaço.
O poeta italiano Eugênio Montale escreveu: “Diziam os antigos que a poesia nos eleva a Deus”, logo abaixo ele completa: “talvez não seja assim quando me leias”, revelando a falta de fé, ou mesmo a ausência ou o distanciamento do sagrado, a carência de uma nova aliança. Isso porque o poeta se contaminou com o materialismo mundano e com os ideais ilusórios do próprio Homem; toda crise existencial é uma crise espiritual, e como escreveu Henry Miller em “A Hora dos Assassinos”:
“Ser poeta era antigamente a vocação mais sublime; hoje é a mais fútil…ele mesmo não acredita mais no caráter divino de sua missão”.
Jean Narciso Bispo tem revelado, a sua maneira, o impasse dessa crise. E como o equilibrista, o poeta caminha na corda bamba da Linguagem, vivencia os extremos com ousadia, porque ele sabe que aqui não há rede de proteção.

 

Mateus MELO - Uma Poética da Psicologia Imaterial e Seus Retratos Efêmeros, Mateus Melo Machado
Mateus Melo Machado, crítico literário, escritor e poeta.
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This Article Has 2 Comments
  1. Fabiano Fernandes Garcez Reply

    Texto maravilhoso! Mateus mostra que a importância de um bom livro, de um bom poeta está na amplitude de sua obra e de leituras.

  2. Mateus Machado Reply

    Obrigado Fabiano, pelas palavras, sempre um incentivo!

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