Sagrado
Geralmente não sou eu quem fecha o sindicato. Naquele dia nós tínhamos feito uma viagem para um congresso e, chegando cheia de papéis, que eu precisaria estudar no dia seguinte, pedi para arrumar tudo. Os colegas ficaram preocupados, mas eu disse que não havia problema, que logo minha irmã me buscaria, e eles tinham plena confiança em mim, então me deixaram ali. Não acredito em pressentimento, então não posso dizer muita coisa sobre as perguntas reiteradas deles. Não, não eram pressentimento; eram medo mesmo.
Eu tranquei tudo, saí e andei um pouquinho. Ali, embora fique escuro, costuma ser um trajeto tranquilo. Dei uma trotadinha, claro, mas é só até você chegar no balão, onde é mais iluminado. Saindo do sindicato deve dar o que, uns cinquenta e sete passos. Aí você vira a direita ali no balão e tem os quatro barzinhos, logo ali já é a portaria do Sagrado Colégio de Engenharia, Técnica e Ciência Aplicada de Cartago, e os estudantes costumam beber ali enquanto matam as suas aulas e reclamam sobre as notas baixas que obtêm em cálculo. Eu fiquei pensando em quantos daqueles foram alunos nossos, de quantos nós formamos, e se nós os formamos com a devida consciência de classe; se não se transformariam nos patrões horrorosos e desonestos que víamos, em todo tipo de sacana. Era nisso que eu estava pensando, e sempre que penso nisso demoro um pouco para lembrar o que ia fazer. Assim que lembrei, liguei para a minha irmã e pedi que ela me buscasse. Atravessei a rua, pedi um guaraná no balcão do bar, senti alguns olhares vindos das mesas e paguei com dinheiro. Fui esperar minha irmã lá fora.
E aí eu tive o ímpeto de olhar para a direita.
O moleque estava lá, e claramente tentava roubar o carro. Não sei dizer se era um moleque ou um homem, o que eu vi foi mais um vulto. E naquele momento eu pressenti que algum daqueles marmanjos me olhava – me olhava, daquele jeito, sabe – mas aconteceu algum tipo de transmutação, porque ele procurou os meus olhos, mas os meus olhos estavam fixos – eu não consigo até agora entender por quanto tempo eles ficaram fixos – mas o marmanjo olhou, se levantou e gritou “Caolha, é o seu carro, tão tentando roubar o seu carro!”. Então meus olhos se desfocaram e vi que outros dois vultos chegaram, e o menino tentava abrir a maçaneta desesperado, e olhou para os dois vultos que vinham, e pensei que naquele momento seriam três, mas o marmanjo que tinha gritado se levantou, e, ato contínuo, outros marmanjos se levantaram, e o bar inteiro pareceu, aos poucos se levantar, e o garoto continuava tentando abrir a porta, com uma inocência ou uma insistência meio imbecis, como se ao conseguir entrar no carro ele fosse ser abduzido, e só então ele ouviu algo, não sei se foi algo dentro dele, mas ele ouviu uns milésimos de segundos antes, isso eu vi perfeitamente, porque ele parou, e pensou em fugir, e os vultos estavam a uns quatro metros de distância dele, e ele ouviu, e ele correu. Largou a maçaneta do carro e correu, tentando passar no meio dos dois.
Eu já não conseguia distinguir muita coisa em meio à gritaria. O carro não. Meu carro nem a pau. Nós vamos matar você. Você tá fodido. Não, para. Mata ele. Olha ali. Para ele. Para, gente! É o fim da linha, amigão. Talvez todos esses slogans sejam produtos da minha cabeça, mas as imagens não, as imagens eram bem reais. O menino, aquele menininho, tentou passar no meio dos dois que voltavam e, a princípio, me pareciam ter se distanciado do bar – os estudantes costumavam fazer isso – para fumar, e pareciam voltar tranquilos, então foi um pouco surpreendente para mim quando um deles aplicou a rasteira no menino, e o menino caiu no chão e se estatelou, e o outro, ligeiro, rápido como se lutasse aquela arte marcial israelense, pegou o menino e o dobrou como se dobra uma bermuda, e nesses segundos o público dos quatro bares em frente ao Sagrado Colégio já o cercavam. E aí era gente demais para que eu pudesse distinguir alguma coisa.
Mas eu vi. Eu via entre eles, talvez pela minha experiência, talvez eu visse com o intelecto, mas eu via claramente. E o que eu via eram os chutes, os socos, o que eu via era um menino, dobrado feito uma bermuda primeiro, e depois amassado, batido, machucado. Ele apanhava, e o quanto ele apanhou eu não sei dizer, porque os gritos que vinham de dentro do bar pararam de acontecer no momento em que a porrada começou, como se fosse uma espécie de ritual, e de repente, no meio do ritual, eles explodiram de novo, todos de uma vez, em uníssono, e eu, o máximo que fiz foi babar guaraná na minha roupa, eu não podia, eu não podia. E então acabou.
E cada um saiu para um lado, e todos se encaminharam para as mesas, pegaram suas coisas e foram se direcionando, ao carro, às quitinetes que habitavam, ou até mesmo para dentro do Sagrado Colégio. Em silêncio.
E é por isso que minha irmã pediu para você vir. Por isso eu não saio de casa há três semanas.
Pelo silêncio.
Porque quando eu vejo as pessoas andando, em silêncio, eu não consigo me furtar a imaginar do que estão vindo, o que estavam fazendo no segundo anterior; eu não consigo.
Fábio Mariano nasceu em São Paulo, capital, mas foi criado em Campinas, SP, onde vive desde o seu primeiro ano de vida. É formado em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Campinas, e defendeu em 2015, nessa mesma instituição, sua dissertação de mestrado em Teoria Literária sobre a obra de William Faulkner na França. Publicou O Gelo dos Destróieres, seu livro de estreia,pela Patuá, em 2018.
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