Três poemas de Gabriel Morais Medeiros

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Gabriel Morais Medeiros (1988) é natural de Campinas-SP. Tem trabalhado como professor de literatura em diversas cidades e instituições escolares do interior de São Paulo, desde 2007.  Acredita que o ato pedagógico é violento (como diria Rodolfo Walsh) e poético-aurático. Angustiado com a situação atual da República Federativa do Brasil, tem se tratado com textos de Susan Sontag, principalmente. Publicou Andrômaca, quarenta semestres em 2016, pela Patuá. Em 2018, sete poemas inéditos foram publicados pela Mallarmargens.

 

 

A DECADÊNCIA É, PARADOXALMENTE, UM COMBUSTÍVEL

Desistências foram-lhe ansiedades.
Levou um tempão até cair de vez, porque as desesperanças
vêm devagar. Mesmo assim
nada nos dá mais poder
do que a perspectiva de uma decadência.
Continuamente ressurgiram aquelas questões
da cirurgia, uma válvula da panturrilha. Os tendões lesionados
ficaram tão frágeis
como se fossem gavetas umbilicais,
ou latões ocos.

Nem o golpe rasgador de chave de fenda
na sobrancelha, aos catorze anos,
fez com que sentisse isso, nem as côdeas
incrustadas nas falanges e artelhos
dos mindinhos e do polegar esmigalhado. Seria melhor
propulsionar os pulmões
com cloro
do que parar para sempre,
ou aguentar tanto por nada.

A não-drogada tetracampeã
do pentatlo
jamais levaria para o ônibus
a mochila emborrachada
ou o celular especial (com seu
fonezinho de plástico creme-bege),
rifados pela Comissão de Incentivo ao Esporte,

como brindes adicionais ao nácar da medalha
que redimiria a terra por quatro séculos.

 

 

AUTO POSTO CAPANEU, FEVEREIRO DE DOIS MIL E ONZE

O pelicano e o ouriço a possuirão; a coruja e o corvo farão nela morada. Iahweh estenderá sobre ela o cordel do caos e o prumo do vazio. Já não haverá nobres para proclamar a realeza: seus príncipes desaparecerão. Nos seus palácios crescerão espinhos, urtigas e cardos nas suas fortalezas: [a cidade] servirá de morada para chacais, de habitação para os avestruzes. Os gatos selvagens conviverão aí com as hienas, os sátiros chamarão seus companheiros. Aí descansará Lilit, e achará um pouso para si.

Isaías, 34, 11-14. Bíblia de Jerusalém

 

I

O que é um engraçado
bonecão de posto de gasolina?

Soe burra, inclusive ultrapassada, a pergunta,
abaixo buscaremos respondê-la,
apesar de tudo.

 

II

A respeito do
mascotão
estripuliador:

trata-se de uma
saca de estopa ou poliéster
com aberturas nas extremidades
inferior e superior, como
uma biruta balizadora, ou um canudo gigante
ou mesmo um esguicho ou
uma vazia cápsula detonadora (de coloração cobre-caramelo)
de munição.

O lado de baixo do boneco
é enlaçado ao bocal
de um ventilador-propulsor;
a turbina portátil insufla-o
em contrações estufadas
que fremem com expansividade;

basta que os canhões pulmonares
bombeiem só uma golfada
para que a capa de costura
se
infle,
hasteada, super-erguida,

como se, num segundo,
num
relâmpago resfolegador

uma coluna vertebral, uma espinha dorsal indestrutível
se houvesse ampliado
em vendavais anteparadores
plenos,
dentro daquela remendada
e frouxa
superfície de lona encapada.

Os bonecões de posto divertem-te
porque, é óbvio, retratam
feições, caretas, bocarras,
micagens;

as lufadas de atrito agitador
aturdem-nos, inchando-os, com esgares atrozes;
pancadas de furacões

controláveis

vertendo-se em borbotões desde
as lâminas motorizadas
inundam o arroubo
dos pandos mamulengos
de manta esticável.

Os jatos incolapsáveis se escoam através
do mencionado
rasgo no topo da cabeça:

“O hominho é cabeludo, franjudo”, digo-te,
de repente:
para ti — que gargalhas
do bonecão feioso, cabeçudo, doidão, pião —

o vórtice aéreo, que escapa
para fora do escalpo
do bonifrate enfunado,
será seu cabelinho invisível,

cabelinhos estes
calidamente refratados
a frisarem, imperceptíveis,
a limpidez das portas automáticas
da loja de conveniência,

às quais talvez, quem sabe!,
franzam-nas
eternamente: porque
se dirá pérpetua
a fantasmagórica propaganda
desse quase-espantalho,
coreografador

de um chofre indecolado,
balão em queda ao contrário,
barbante assoprável,
sacola.

São tão engraçados e têm causado
tanta atenção
que umas fábricas de São Paulo
remetem-nos, em encomendas,
para várias cidades. São originários, pelo
que dizem, de Boiçucanga e
Mongaguá.

Por fim, poderemos refletir,
até mesmo, sobre sua
invisível blindagem —
ou blindadura –:

mesmo que umas perfurações
ou o vértice de uma facada
desfiram-se contra
as jugulares de fibra,
ainda assim o fantoche
não murchará;
seguirá fustigando-se
desde que as rajadas mecânicas
sigam-no empuxando —
com azorragues ciclônicos
com flagelos de furacões
cônicos —
às toras de árdua flanela.

 

III

Postscriptum, dois mil e dezoito:

Até que ponto – é uma hipótese que nos cabe sondar –
o transe e o tremor de MC Loma e das Gêmeas Lacração
especificamente em “Treme Treme”,

têm algo da sedimentação,
da influência fantasmal,
da sobrevivência formal, do espectro dançarino,
da frequência da temporalidade,

daqueles histriões de plástico?

Estes, hoje, se rarefizeram quase totalmente:
foram – percebe-se – aos poucos desaparecendo
ante os postos da cidades e das rodovias.

 

 

SOBRE SUPERFÍCIES BLINDÁVEIS CONTRA O BALAÇO-MUNIÇÃO DE UMA ESCOPETA NITETATLA-CENQUIZTOC, 1946, CALIBRE PONTO-QUARENTA

Tive uma ideia…para um roteiro…para o roteiro de um filme…mas algumas cenas são bastante arriscadas…elas precisam ser mais trabalhadas, exigem ensaios com material vivo. Por hoje basta. Podem se vestir.

Gombrowicz. Pornografia.

A superfície
do capacete róseo,
tão polida,

lembra uma maçã pulmonarmente
plenilunar,
de seda alcoólica, cristalizável,
ou um cogumelo
de vidro mecânico,
ou mesmo uma réplica
miniaturizada de Plutão.

Se ao reverso,
o capacete —

de que o bojo
almofadado
torna tua nuca
incontundível —

será
um pote envasador
para maçãs
farináceas, e

caldas
de cigarros
e laca, ou inclusive
mel inoxidável congelado,

porventura, ou
cápsulas
de granadas
dentárias, cerosas, acrílicas,
inquebráveis.

Não, tu não tens órgãos,
ou esponjas renais
numas fendas do
abdômen,

nem medula-tutano, nem plataformas cervicais,
óleo dentro do escudo dos quadris, ou nervuras às virilhas.

Teus rins são tão-somente
bulbos de luz renal.

Teu tórax: uma espessura
contínua e fibrosa
como o pano
de uma camisa-de-força Tugorra 1988;

feito de borracha óssea,
cinzenta, flexivelmente
ductilizada por oxigenações
venosas,

teu peito é todo-adensamento,
colete incólume
às
acelerações retráteis,
às retrancas
de um
Nitetatla-Cenquiztoc
super-automático.

 

 

 

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