MICROCONTOS de ANDRÉ MELLAGI
A viúva dona Lourdes queria morar sozinha mas os filhos não deixam, onde já se viu, e se a senhora passar mal, quem vai te socorrer? Pula de casa em casa dos três filhos, pega o Flavinho na escola pra mim, faz aquela goiabada que servia pra gente, não conta para Fabiana o que te falei, não mexe no rádio que o Gustavo não gosta de barulho. Atura mau humor da cunhada, a birra da neta, o sumiço do colar de pérolas que guardava na gaveta. Ninguém entendeu quando dona Lourdes foi encontrada dormindo no cemitério.
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Hoje era aniversário da morte do filho, 14 de dezembro de 1998, três tiros na esquina da rua onde morava, o latido do cachorro da vizinha, as luzes da sirene sobre o rosto morto, é ele mesmo? tragam uma cadeira e uma água com açúcar, deixem ela com ele, silêncio, o cachorro ainda late. Levam o corpo para o IML, ela para a delegacia, se reencontram no velório, quer chamar um padre? 14 de dezembro às 22:38 horas, mudaram de cidade, mas nesse dia e nessa hora ainda ouvia o cachorro da vizinha que não parava de latir.
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Maria Padilha cheirou as rosas e mordeu uma maçã. Deu um trago no cigarro e um gole no espumante. Apanha uma pulseira, tremelica no braço, conduz um batom que carimba os lábios. Aproxima a luz da vela vermelha de sete dias no espelho para verificar se ficou bonita. Estica um beijo, abusa do perfume, manuseia o pente nos cabelos que estava no padê. Porém, sentiu falta de pimenta na farofa. Na manhã seguinte, Clodoaldo liga para Gisele e diz que quer voltar, mas à noite não deu no couro.
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Disseram para Eulália que quando ele viesse, estar preparada para não ir com sede ao pote, apreciar devagar, manter uma distância segura para conhecer melhor quem ele é e não se esquecer de quem ela é. Perguntar sobre seus antecedentes, seus planos, seus gostos. Ir com calma, sem perder o chão, lembrar daqueles que sempre estiveram com ela, quem lhe deram a vida e a educaram. Não abandonar seus compromissos, segunda o balé, terça a aula de francês, dezembro a festa de final de ano com a família em Cruz Alta. Mas quando ele veio, Eulália se perdeu. Renasceu com ele enquanto os outros ecoavam uma língua que ela não reconhecia mais.
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O caçula foi arrastado pela orelha até o quarto, por ter se pintado com o estojo de maquiagem da mãe. O pai disse que dança era coisa de meretriz e a filha vestiu camiseta na praia para não exibir os cortes que fez no braço. A mãe chorou escondida no banheiro depois de ver a foto do amante com a esposa em Paris. O pai mandou todos sorrirem na foto das férias, antes de saber que a Receita apreendeu sua mercadoria no porto de Paranaguá. Recebeu 78 corações no Instagram.
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Nós avisamos, Dri, que o namoro não ia dar certo, arquiteto que nunca exerceu a profissão, doze anos mais velho e já com filho, por que você teima em ser bióloga, viajando no meio do mato, acha que vai arrumar emprego? Sabíamos que você não deveria abrir aquela loja de artigos de surf, nenhum pé-rapado que você conhece vai comprar, como assim largar tudo e ir morar no Acre? Ficou louca? Sorte sua que não pegou nenhuma doença. Fazer mergulho, nessa idade? Por que você nunca escuta a gente, Dri?
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Quando Beatriz amou, uma borboleta pousou em sua nuca. Ao sair de casa, uma estrela nasceu em seu pulso. Após terminar o noivado, um sol flamejava em volta de seu umbigo. Anotou no ombro a data e as coordenadas geográficas onde sua filha nasceu. Descobriu um nódulo e uma cruz despontou atrás da orelha. Quando o nódulo se foi, um lótus desabrochou sobre a cicatriz no pescoço. Voltou a cantar e uma colcheia vibrava numa falange média da mão esquerda. Ao perder o pai, escreveu superação em mandarim entre duas costelas.O que ainda havia para contar, preencheria as páginas de sua pele.
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André Mellagi nasceu em São Paulo, é psicólogo com doutorado em Psicologia Social e escritor. Lançou em 2017 seu primeiro livro de contos Bricabraque pela editora Patuá, coletânea que foi obra pré-selecionada ao Prêmio Sesc de Literatura de 2016. Participou de antologias e de publicações literárias online, tais como a revista g.u.e.t.o., Diversos Afins, Mallarmargens, PulpFiction, Subversa, além de publicações impressas (revista Bacanal e O Último Leitor Morreu)
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