Minhas outras vidas, de Alexandre Brandão

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Alexandre Brandão, O BICHANO EXPERIMENTAL, 1º Edição. São Paulo: Editora Patuá, 2017.

 

 

Minhas outras vidas

Alexandre Brandão [1]

 

      Antes de ser animal, fui coisa. Não na acepção que mãe ou mulher vez ou outra costumam dizer: “Esse é uma coisa!” Não nesse sentido: fui, de fato, um abajur. Deixei à meia-luz a solidão rotineira das famílias de classe média, enquanto na TV, coisa que nunca fui, exibiam-se, em novelas, as mentiras de um país idealizado. Não posso me queixar, também alumiei pegas de um casal beirando seus cinquenta anos e de guris aproveitando-se da ausência dos pais.

    Quebrado durante a mudança de Brás de Pina para Pirenópolis, meus caquinhos juntaram-se noutro objeto. Não fui mais de cerâmica, perdi as funções, o lugar na sala e passei a ser um enxadão. Arei o deserto, cavei terra em fundo de rio, assassinei um infiel. O sangue ficou sempre ali, nunca me lavaram nem voltaram comigo ao batente. Enferrujei ao lado de um catre de palha de um joão-ninguém.

   O vigor de enxada levei para meu período de caminhão. Transportei boi, transportei boiada, transportei mercancias de todos os tipos e melancias de um tipo só, podres, desprezadas até por porcos. Fui e voltei. Rateei em ladeiras tímidas, perdi o freio quando o motorista perdeu o medo e acelerou onde não devia. Passei a beber muito óleo e a esfumaçar o mundo com ganas de furar a camada de ozônio. Pum de caminhão faz frente ao de caprino.

     Divertido meu tempo de objeto erótico. Ficava esquecido numa gaveta, sufocado por calcinhas e peças indelicadas jogadas ali sem motivo algum: canivete de um tio distante, anel de latão com que o primeiro namoradinho presenteou a menina romântica, cotonete, isso mesmo, até cotonete, vez ou outra usado. Isso era nada perto do momento em que eu saía do armário. Para dizer a verdade, era arrancado de lá e era… e era mais uma vez… e assim tantas e muitas. Uma diversão só. Mimi um dia se cansou de minha virilidade sem fracasso. Como não se dá consolo usado de presente, fui parar no lixão.

     Graças à reciclagem, voltei ao mercado ora como enfeite barato, feito a máquina, ora como lantejoula usada no carnaval gaúcho. E ainda como isqueiro que nunca funcionou muito bem. Do antigo vibrador, apenas a parte na qual se coloca a pilha ficou no lixão. E ali ficará, pois não há natureza capaz de absorver esse trocinho de metal.

    Quis ser a nave que foi a Marte, porque assim me isolaria desse mundo de coisa ao redor das coisas. Não fui, sobrou o trabalho duro de triturador. Não gostei de liquidificar cenouras e cebolas. Tampouco  de ser, depois, carro de Fórmula 1. Guardo boa lembrança do verão em que fui um ventilador pequeno, que refrescava pouco. Eu me lixava para o calor alheio, gostava de girar daqui pra lá e de lá pra cá e acho que nunca estive tão próximo da condição de nãocoisa: balançava sem estardalhaço, como, no tango, o melhor dos dançarinos. Tive chance de ser abridor de lata dos mais vagabundos. Só esse instrumento sabe exatamente o que se passa na cabeça de uma pessoa que tenta, cheia de caretas e, por causa disso, cheia de expressões reveladoras, abrir uma lata de ervilha (e quem é que nunca abriu uma lata de ervilha?). Se um dia quiserem conhecer os segredos do mundo, torturem (talvez não seja preciso) um abridor de latas vagabundo. Corram, eles estão em extinção.

    O urinol de Duchamp não era outro senão eu. No cotidiano, fui catraca de ônibus. Bola de gude lascada. Forte apache de plástico. Bilboquê. Certa vez, no Afeganistão, fui bola de golfe que um soldado americano mantinha na mochila, segundo ele, para uma eventualidade — que, por sorte, eu acho que por sorte, nunca soube qual era. Como na natureza nada se cria e tudo se transtorna, pelas vias normais de dona Haydée e com a ajuda das mãos do doutor Antônio Carlos Piantino, vim à luz com cinco quilos e seiscentas na Santa Casa de Passos. A partir daí, primeiro minha mãe e depois ficantes, rolos, namoradas e moças de patentes mais altas sempre encontraram motivo para se virar contra mim — “sujeito sem o apetrecho do juízo ou metido a engraçadinho” — e, sem dúvida, afirmar: “Você é uma coisa”. Uma coisa… O que sempre fui, e continuo sendo.

 

 

[1] Crônica de “O bichano experimental” (Editora Patuá), sexto livro do autor que, em 2000, ganhou a Bolsa do Autor, prêmio concedido pela Funarte. Alexandre Brandão pertence ao grupo Estilingues e escreve em seu blog No Osso e na revista Rubem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] Crônica de “O bichano experimental” (Editora Patuá), sexto livro do autor que, em 2000, ganhou a Bolsa do Autor, prêmio concedido pela Funarte. Alexandre Brandão pertence ao grupo Estilingues e escreve em seu blog No Osso e na revista Rubem.

 

 

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