Sangue
Papai estava lá dentro e mamãe gritava na sala e vovô estava na cozinha com Dora. Um caixão enorme e parecia pesado. Como é que foi isto? Ele estava se empanturrando de macarronada. O colarinho sujo de molho bolonhesa. Subiu as escadas e, no quarto, tirou as botas. Resmungou qualquer bobagem pra mamãe. Ela não deu ouvidos. Era uma mosca. Uma mosca o incomodava e ele gritava por inseticida. Mas mamãe não ligou. Como de costume.
Daí ele foi pro bar. Ficar mais cheio de si. Jogar bilhar com os amigos. Assobiar para qualquer mulher que passasse na calçada e tomar cachaça. Dá boa, que rasga a goela, dizia.
Não voltou nunca mais.
Está aqui dentro. Encaixotado.
Mamãe não para de chorar. O telefone tocou. Ela deixou cair no chão. Acho que pelo choque, pelo susto. Nunca mais parou. Ela chora e grita. Aquilo era realmente irritante. Papai sempre odiava quando ela começava o show. Agora mamãe chorava bem em seus ouvidos. Ele deve estar se revirando ali.
Coitado de papai. Preso no próprio caixão.
Mamãe disse para eu me despedir. Fui depois de Otávio, meu primo. Quando estava a dois passos da escada, Otávio me cutucou e apontou para as coxas de Dora. Ela limpava a baba de vovô. Pai de meu pai. Eu ri das coxas de Dora. Ela usava umas meias enormes. Cor de bosta. As meias de Dora ultrapassavam suas coxas, invadiam suas partes. Estavam muito rasgadas. Eram famosas àquelas meias. Papai as adorava. Uma vez, o peguei cheirando elas com força no banheiro. Acho que Dora usava suas meias em homenagem a papai. Dora era boa e papai a amava. Mas mamãe sempre a chamava de puta.
Puta.
Era como mamãe chamava Ana também. Ana é uma puta e descarada, dizia enquanto chorava. Numa sexta, à tarde, Ana se foi. Mamãe a chutou pra fora. Papai ficou furioso. Foi ao bar. Era sexta. Mamãe chorou até domingo. Na segunda, ele estava se empanturrando de macarrão e nunca mais se falou em Ana. Era a terceira.
Ai veio Dora ou o vovô. Não sei. Dora e vovô chegaram meio juntos na casa. O cérebro dele parou. Quase isso. Ficou todo troncho, o vovô. E meu pai o odiava, mas mamãe bateu o pé. Ai ele ficou lá. Vovô gostava da cozinha. Ou pelo menos era lá que o deixavam. Bem no canto, em sua cadeira de rodas. Ele cheirava muito mal e sempre gritava coisas sem sentido. AAAAAahhhhh, OOOOOoooooh, EEEEEEEEEEeeeeeeeeeee, IIIiiiiiiiiii, OOOOOOOooo, AAAAAAAaaaaaa. E aquilo me assustava, no começo.
Papai ficou mais bravo ainda porque Dora era de vovô. Tinha se tornado dele. Estava sempre trocando suas fraldas ou lhe dando comida. Ai eles começaram a disputar Dora. Ombro a ombro. Pau a pau. Como nos velhos tempos. Meu pai gritava quando já estava bêbado demais. Um dia, papai não aguentou e deu um soco em vovô. Ele só caiu, aos poucos, em frames. Foi um baita cruzado. Bem no queixo do velho. Era puro ódio, aqueles dois. Vovô só movia os olhos. Mas, ainda assim, olhava como quem preferia morrer ao deixar esse mundo antes de meu papai. Ele ia ficar lá, em sua cozinha. Mesmo com vovô imóvel, eles brigavam, todos os dias. Desconexo, papai falava de uma prostituta do Rio de Janeiro e de um trabalho de guardador de carros e de uma faculdade de Direito trancada e de uma carreira de motorista arruinada por um acidente.
Filhos da puta.
Ficava com dó deles.
Dora nada fazia e muito menos mamãe, que estava sempre no trabalho.
Era estranho pensar que ele nunca mais voltaria. Alguém colocou um retrato dele em cima de seu caixão. Quem foi que colocou essa merda? Deve ter sido minha tia. Estava engraçado, pelo menos. Parecia bem feliz e estava com o colarinho manchado. Um sorriso meio achatado e vestia um macacão azul.
Todo mundo diz que pareço muito com papai. Odeio quando falam isso. Não queria. Acho seu nariz largo demais. Fora que me parece rechonchudo, sempre com a boca cheia. A foto me dá vontade de chorar. Pelo vidro do teto – essas loucuras de mamãe – percebo que sim, pareço com ele. O riso achatado. Nariz igual.
Choro.
Agora sou eu e mamãe.
Papai. Nunca mais o verei. Papai está morto. Morte, é isso. Deve estar sonhando com as meias de Dora agora. Vovô sorri.
Danilo Brandão nasceu em São Paulo e mora em Londrina, interior do Paraná. É formado em Jornalismo na Universidade Estadual de Londrina. Tem textos publicados em sites, revistas e jornais literários.
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