Amado – conto de Itamar Vieira Junior

Itamar Vieira Junior - Amado - conto de Itamar Vieira Junior

 

 

Amado

Itamar Vieira Junior

                                                  

          Hoje, pela manhã, separei três ovos, retirei o leite e a manteiga da geladeira. Olhei também a validade da farinha de trigo com fermento. Coloquei tudo em cima da mesa e sentei. Fitei o sol, uma luz branca e silenciosa pedindo licença, chegando copiosamente pela janela de vidro da cozinha. A cortina amarela brilhava seca. A luz se estendendo mais e mais, alcançando meus pés, aquele calor repentino acompanhado de um arrepio que surpreendia. Calor estendendo-se pelos pés como línguas de fogo. Algo entre o sereno e o cálido, uma mensagem tranquila para um começo de dia.

          Há pouco, havia retirado a mesa do café da manhã. Um café silencioso como fora nas últimas duas décadas. Nós dois sentados à mesa. Uma mesa como muitas mesas. Uma toalha xadrez, de que gosto muito, e que oscila entre o laranja, o amarelo e o vermelho. Torradas, mamões cortados e sem sementes, por vezes um melão espanhol. O bolo dominical. O aroma do café fresco e a nata flutuando no leite depois da fervura.

          Meu marido sentou-se e tomou café. Quebrava o silêncio persistente com uma frase que não entendia, perdido entre seus livros. Às vezes falava de um sonho. Tomava um café rápido, em quinze minutos ou menos. Ao sair da mesa, beijava-me a testa, passava a mão carinhosamente em minha cabeça. Hoje, particularmente, falei sobre a aposentadoria, a festinha que prepararam no cartório de registros, onde subscrevi nascimentos durante quase trinta anos. Ele sorriu dos balões de festas, eu também. Levantei-me para buscar o álbum que havia recebido como presente, com momentos daqueles anos: a partida de um colega, festas de fim de ano, aniversários. Um bonito gesto, mas que me deixou com uma particular melancolia, porque observava entristecida meu corpo declinando, meu desmonte físico, meu semblante endurecendo. As linhas do rosto em evidência. Havia ausências. O corpo ganhava peso, existia, nas primeiras fotos, uma luz, uma insistente alegria. Em uma das fotos, estava com um vestido de grávida feito por minha mãe. O braço forte repousado sobre a mesa. Gostava da foto e não me lembrava mais de sua existência. Chorei com a surpresa, tão delicada, de companheiros novos e velhos. Companheiros de uma vida.

          Ele demorou-se mais à mesa que os outros dias. Olhou, atenciosamente, o álbum. Retirei o farelo de pão que caiu sobre o plástico que a revestia com dois movimentos de dedos. Ele sorriu, conteve também a emoção quando me viu mais nova, nos primeiros anos de nosso casamento. Havia uma saudade pelos tempos mortos, a contemplação do nosso natural declínio. Melancólico. Mas não havia tristeza naquele contemplar… Havia uma emoção particular por nossas histórias e trajetórias, em parte, vitoriosas.

          Quando fechou o volume, olhou-me com ternura, vi seus olhos levemente úmidos e percebi um pouco do amor que me destinara em seu sorriso. Senti regozijo e acariciamos nossos rostos. Seu beijo hoje foi mais profundo, reservado aos nossos momentos especiais, dosado como um poderoso remédio.

          Saiu pela cozinha com o jornal. Vi ele se afastar em direção ao sol, os braços brancos, os cabelos cinza-grisalhos, os óculos pendurados no pescoço e o tronco levemente curvado. Sentou-se na mesma cadeira branca ao lado da palmeira. O mesmo sol sereno, que me chegava aos pés, era o que lambia suas frontes.

          Os ingredientes do bolo estavam dispostos aleatoriamente na mesa. Fitei, mais uma vez, a fração de céu, o tempo silencioso, a luz que levantava e alcançava o começo de meu joelho. Respirei profundamente, sentada e tentando fazer com que a coluna permanecesse ereta.

          Mais cedo, quando lavei o rosto, ao acordar, escovei o cabelo grisalho, quase todo branco. Sequei a face, como todos os dias, com uma das toalhas secas que ficava embaixo da pia. Às vezes, como nessa manhã, tinha tempo de olhar ao redor de meus olhos. Percorria as imperfeições de minha pele, os vincos profundos, os mais leves. Incomodavam-me, mais que todos, os que ficavam ao redor da boca. Achava que me deixavam com um aspecto de mulher má. Tinha pavor de ser comparada a uma mulher má. A culpa recortou o meu caminho, fez-se presente nas últimas duas décadas. Ecoava, diariamente, como um pio de coruja cortando a noite, a cada vez que me movimentava pela casa, que saía até a porta, que via crianças brincando de bicicletas ou encontrava em meu caminho uma família aparentemente feliz. As rugas, ao redor da boca, não eram a marca da maldade, mas, na construção do meu inconsciente secular, ressoavam fazendo com que parecesse as velhas bruxas dos livros infantis.

          Tudo tinha sido tão perfeito, até o sorriso se extinguir pela porta, se dissipando num dia de sol e sem ventos. Abri os olhos para não recordar apenas esse estrito momento. Levantei a mão à frente do espelho, gostava de fitá-la um pouco retorcida como um galho velho e seco. A pele recheada de manchas. As mãos que carregaram, que amaram, que se despediram. Era como uma bandeira erguida num eterno adeus. Levei a mão até meu rosto, acarinhei delicadamente as minhas pálpebras, toquei, num reencontro, a pele e meus olhos. Caminhei para a cozinha, quando escutei a cama se mexendo.

          Um bolo se faz com ovos, farinha de trigo, leite fresco e boa manteiga. Um bolo se faz para dias especiais também, como um aniversário. O bolo era para um aniversário. Não falei nada, pela manhã, sobre isso. Não costumava falar. Era uma obrigação anual, diferente, um resgate de minha história, das histórias dos meus. Havia mais um ingrediente que, por vezes, me esquecia de relacionar: lágrimas. Gotas de líquido salgado, descendo de minha face, temperando a massa leve e cremosa com minhas memórias, dúvidas, tristeza pelo tempo e um frágil cristal de esperança. Era o único ingrediente que não precisava ser lembrado, que brotava espontaneamente, todos os anos, como as chuvas das monções ou a Fonte das Pedras.

          Peneirava a farinha, uma mistura de poeira fina e fragmentos da mente, dedos e nuvens tocando o branco do sol. Segurava, já sem o mesmo vigor dos anos, exausta pelo esforço, pela presumível inutilidade do gesto. Era como se, quando a massa crescesse no calor do forno, fizesse junto aos bons presságios. É como se as lágrimas e as mãos comungassem num experimento de alquimia e encontrassem a minha panaceia particular.

          Aquecia o forno a cento e oitenta graus, riscava o fósforo, apagava-o com um sopro. Quisera apagar, no sopro, as coisas que me fizeram e me fazem sofrer e que não gostaria mais de lembrar. Como guardar os bons momentos, as boas lembranças se, inevitavelmente, uma coisa remete a outra, e a memória amalgama tudo de forma cruel?

          Há vinte e seis anos, nascia meu primeiro e único filho. Tão amado havia sido, tão esperada foi a sua chegada. Lembro-me adentrando a casa, com ele em meus braços com a manta amarela, os cabelos negros, os olhos saltitantes, o filho tão amado e esperado.

          Fechava os olhos e sentia-o sugando meu seio, mamando, forte e vivo, tão faminto – a sensação é a mesma na pele e no movimento, na minha pele insensível de seios velhos e murchos. Fechava os olhos, e tudo era agora.

          Nas manhãs verdes e radiosas, saía com o pai para dar as primeiras pedaladas de bicicleta. Espantava-se com os bichos, emocionava-se com a natureza. Ensinamos a amar a tudo da forma mais generosa possível. Só não lhe ensinamos sobre a brevidade das coisas, a efemeridade do mundo e dos sentimentos. Dizia para ele acreditar que o amor era eterno, indestrutível. Repeti insistentemente que o amava. E até hoje digo, em minhas orações, numa esperança eterna.

          Ajudava nas tarefas da escola, sorria dos desconexos brinquedos do seu comércio. Negociava as coisas da casa, as coisas construídas por suas mãos: aviões tortos de papel, pulseiras com fios que sobravam das empresas de telefonia. Sorriamos, porque éramos os únicos compradores de suas bugigangas. Havia uma indescritível emoção e loucura no meu amor maternal. Coisas inomináveis. Coisas que não conseguiria traduzir.

          Numa manhã de domingo, como em muitas outras, me despedi à porta. Ele portava a bicicleta que demos de presente no último natal. Dali a alguns meses completaria oito anos. Era um dia de sol forte e sem ventos. Um dia claro e passageiro. Voltei para a cozinha para preparar o bolo para o seu lanche da tarde. A mesma receita, com a diferença de que hoje existem lágrimas para acrescentar um leve sabor de sal.

          Ao meio dia, ele não retornou para o almoço. A mesa estava posta, e o pai tomava banho. Saí à rua, esgueirando-me pela porta. Andei uns duzentos metros. Olhava os arbustos, as árvores, as casas vizinhas. Tentava imaginar onde pudesse estar. Talvez se escondendo para, de repente, beliscar minha perna sorrindo. Enxugava minhas mãos na barra da saia. Olhava, atentamente, a tudo chamando seu nome. Voltei para porta. O pai enxugava a cabeça. Ele disse que havia deixado o filho na porta, logo entraria para tomar banho. Resistiu tranquilamente à ordem do pai, pediu para ficar mais um pouco. Observava-o da janela da cozinha. Tudo tão iluminado, o sol forte, o suor escorrendo pelas costas. Voltei para fora. Vi sua bicicleta encostada na parede da casa. Cheguei mais perto e a toquei: estava fria.

 De repente, o frio e o tremor.

          As buscas mobilizaram os vizinhos da rua. O dia escureceu. Lembro-me da comida fria à mesa. Imaginava o que poderia ter acontecido. Telefonei para os amiguinhos da escola. Batemos de casa em casa na vizinhança. Minha irmã que morava distante chegou para ajudar. Os vizinhos foram solidários. O tempo se esvaía e não obtínhamos notícias. Notificamos à polícia, andamos por quase todos os hospitais da cidade, no necrotério. Não me lembro, ao certo, de quando comecei a chorar, mas, quando completou vinte e quatro horas de sua ausência, retornei para casa, amparados pelos mais próximos amigos e familiares. Lembro-me de desabar ao chão de forma vazia e dolorida, caindo como uma folha seca, morta, desacreditada.

          Ele havia desaparecido como desaparecem as coisas maravilhosas: a chuva que evapora, o fogo que se extingue. A vida que se finda. Alguém o havia roubado de mim. Dezoito anos depois, ainda o procuro por esquinas, cidades, por sonhos que ninguém pode compartilhar. E a dor que me dilacera é a ausência de resposta, de seu corpo. A dúvida. A pergunta em meio a um mar de dúvidas.

           Arrumei a mesa para você. Fiz ovos fritos, chocolate, torradas. Amei você, apenas amei, sem nenhuma resposta, sem nenhum entendimento. Era a minha continuação. O espectro de minha eternidade.

          Você pulou em meu colo, abraçando minha cintura com suas pernas que cresciam. Você beijou minha face de forma forte, deixando um molhado de saliva, algo mágico e único que, por mais que se passem os dias, jamais esquecerei.

          Você deitou as duas noites anteriores em nossa cama, entre mim e seu pai. Colou-se ao meu corpo, deixou emanar calor para o que chamávamos de família. Você estava no centro de nossas vidas. Era um doce motivo para continuarmos vivendo.

          A casa está impregnada de cores. Há brinquedos e livros ilustrados para que deleitemo-nos juntos em nossas descobertas. Seu pai carrega um orgulho da cria, da continuação. Vejo, nos olhos do pai, o quanto o filho o completa como homem. Não temo a quebra da harmonia familiar.

          Você, quando cansa de ouvir minhas histórias, tenta trazer minha atenção para o que está ao seu redor. Por vezes, pega, na penteadeira, uma escova para deixar meus cabelos embaraçados. Eu gosto de sentir suas mãos pequenas em minha cabeça e não costumo pensar sobre a utilidade do instante. Me senti por muito tempo melhor assim.

          Há brinquedos esparramados pelo chão da sala. Existem momentos em que sentamos juntos para brincar de qualquer coisa. Há muitas coisas que consideram a eternidade em sua imaginação. Delicio-me com seu sorriso divertido, e quase nunca o vejo chorar. Sua imaginação tem cores vivas, cintila como uma aquarela que nunca será concluída. Abraça meu pescoço ao “derredor”, e seus braços e abraços marcam sempre a minha pele clara.

          Vejo-o pedalar entre os bosques em meus sonhos, mas é na rua que se desespera a me chamar. Corro para lhe buscar e quase sempre o acolho em meus braços. Vejo-o na rua pedalando, voando como um pássaro ágil. Cresce forte e veloz. E tudo isso me dá uma infinita tranquilidade.

          Você me pede para brincar. Quer dar umas voltas de bicicleta pela rua. Não irá muito longe, e seu pai lê o jornal do domingo na porta de casa. Você entra correndo na cozinha e beija-me por trás enquanto misturo o leite à massa do bolo. Coloca o dedo na massa, e eu olho com reprovação, mas com uma agradável sensação na alma. Paro um pouco tudo para, juntos, carregarmos a bicicleta que está no vão interior da área de serviço e levá-la até a porta. Você veste uma blusa branca e uma calça azul-marinho. Nos pés, está um par de tênis novos que ganhou no último domingo de sua avó. Seguimos juntos com as mãos sobrepostas no guidão da bicicleta. Você não olhou para mim quando saiu pedalando, ziguezagueando pelo asfalto. Acenou com certa pressa para o pai, que levantou a cabeça do jornal e lhe sorriu de forma pálida. E eu demorei-me na profundidade de um longo adeus.

 

 

Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia. É doutor em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA) com pesquisa sobre a formação de comunidades tradicionais quilombolas no interior do Nordeste Brasileiro. É também autor dos contos reunidos no volume “Dias” (Caramurê, 2012), vencedor do XI Prêmio Arte e Cultura (Literatura – 2012) e do livro “A oração do carrasco” (Mondrongo, 2017), obra selecionada pelo edital setorial de literatura da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. Dois de seus contos foram traduzidos para o francês e publicados nas revistas L’Ampoule e À L’Index Espace d’Ecrits nº 33.

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