Os poemas de O Pau do Brasil estão sendo publicados em livro desde 2016, com seguidas reedições, no Brasil, pela editora Urutau. Foram publicados em livro em Portugal, na antologia Exílio aos olhos, Exílio às línguas (Oca, 2017), e também em revistas eletrônicas daquele país (Caliban, InComunidade, Triplo V, Gazeta de Poesia Inédita). Alguns poemas foram traduzidos ao espanhol e publicados na Venezuela (Ciudad CCS) e na Argentina (La Pecera). A próxima edição brasileira do livro será lançada na 16ª Festa Literária de Paraty, em 28 de julho.
Para Marielle Franco
Vivemos numa democracia, todo mundo sabe, onde aviões só caem por acidente ou vontade divina, de repente, em momento certo, matando uns inimigos. Numa democracia em que lamentamos, verdadeiramente, vereadoras assassinadas, que se opõem às intervenções necessárias, já explicadas no jornal de domingo. A democracia nossa, se sabe, é própria do estado de direito, em que o esquerdo se cala porque deus padre não fala com estado laico, baderna, burburinho. Na democracia, manda quem pode, obedece quem tem furico. Nela somos iguais, filhos e pais, mas mamãe tem os seus preferidos. Se você não se esforçou direitinho e não foi bom menino, tiramos seus mimos, sua bolsa família, te deixamos nu, no exílio, diante da matilha do colégio de elite. Botamos fogo para que você se exercite, no martírio da livre concorrência, em que paciência e investimento são as maiores virtudes. O país anda cheio, e mesmo assim democrático, faremos um pacto, e talvez você não entre na primeira lista. Nesta nova fase, em que trocamos pato por sapo, privilegiamos turistas, vamos testar novos gases e oferecer novos ares, a professores, putas e ativistas. É o nascimento de mitos, é o ocaso da guerra, nesta terra, faremos lindos campos de concentração a venezuelanos bolivarianos chavistas, indecentes artistas, universitários confusos e demais ignaros. É a democracia.
A Caravana
Tiros que o senhor ouviu foram de terrorista não, ele diz. Mireveja. Que atiraram eles próprios na caravana, balas de chumbinho, balas de atiradeira, diz que os de vermelho são ainda piores que aquele que não se nomeia. Diz que até a mulata foi coisa de armação do crime. Que eles colheram o plantado. Que o homem quis transformar o país num galinheiro, e agora colhe ovo por onde passa. Mas o que é que eles sabem de granja e de tiro, para tudo misturar? Minha gemada não mata, eu disse. Caipira imundo, me disseram, e não me fiz de besta. Que se repita isso em tudo o que é folha e telefone, não tenho que dar eu por certo. Deus por mim. Povo prascóvio. Cara de gente, cara de cão: determina-se que o bolso mita, que o mar mita, que a massa mita, e essa cavalice só há de dar indigestão. Isso para mim é muita dinheirama e pouca visão das coisas. Saúva da porra. Deus esteja. Até no rádio disseram, calcule: que não fosse o homem em terra de gente culta ou politizada. Qual o quê? Vergonha das gerais, das grandes. Que tiro agora é coisa de culto. Só se for na igreja deles. O senhor não tolere mais e teime. Que basta de tanta aviltagem. Que gado não mais hei de ser. Cá gado estou e nada. Já me basta de arrocho de poderoso. Ou o senhor cria vergonha na sua santa cara ou se morre de discurso de autoridade, comendo esta bosta, com a cara cheia de tiro. Por porteira minha não passe essa gente cavala.
A Canção do Exílio
Minha terra tem palmeiras onde mija o jucá. As leis que alguma vez havia não funcionam mais por lá. Minha terra tem pães de açúcar para turista fotografar, pretas bonitas para comer, bater, matar. Minha terra tem mordomos, castas, clãs e clubes de tiro, e toda noite, segunda a domingo, brinca-se de polícia e ladrão. Minha terra tem palmeiras e quase já tem militar. Não permita zeus que eu sofra nas masmorras da febem, do depê ou do jecrim. Numa terra assim de grande, tanta natureza, tão pouca história, por que falta a memória para perguntar quem dá os tiros? Minha terra tem o coco, tem o oco, tem as bundas e os festejos, minha terra não tem pretos, só moreninhos, mulatinhas, tudo orgulho da comunidade. E para os machos de verdade, vaselina para os cuzinhos infantis. Minha terra não tem livros, mas tem círios, não tem leitores, mas senhores — de terno nem sempre bem cortado — que carregam bíblias mas não se comovem. Minha terra tem milico, tem o mito, tem e tem pezão. Minha terra tem tortura, atentados à cultura e até crime estatal. Constituição já não precisa, camelúcia é que autoriza, de acordo com a convicção. Minha terra sim tem dono, tem o ônus de tortura, desmando e escravidão. Ao cismar sozinho à noite, me coço inteiro a perguntar: para que tanta palmeira, tanta amazônia, tanta besteira, se tudo se acaba em jucá?
Wilson Alves-Bezerra (São Paulo, 1977) é poeta, tradutor, crítico literário e professor de literatura. É autor de Histórias zoófilas e outras atrocidades (contos, EDUFSCar / Oitava Rima, 2013), Vertigens (poemas em prosa, Iluminuras, 2015, que recebeu o Prêmio Jabuti 2016), O Pau do Brasil (poemas em prosa, Urutau, 2016), dentre outros. Atua ainda como tradutor literário, tendo traduzido autores como Horacio Quiroga (Contos da Selva, Cartas de um caçador, Contos de amor de loucura e de morte, todos pela Iluminuras) e Luis Gusmán (Pele e Osso, Os Outros, Hotel Éden, ambos pela Iluminuras). Sua tradução de Pele e Osso, de Luis Gusmán, foi finalista do Prêmio Jabuti 2010, na categoria Melhor tradução literária espanhol-português.
Be the first to comment