Três poemas de Fernando Abreu

 

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À MARGEM, ACIMA

ali estava eu de volta
desistindo de desistir da poesia
diante de novas possibilidades de vida no poema
eram possibilidades modestas
mas eram minhas
só eu sabia o que tinha passado para
estar diante delas
atrapalhado sem saber por onde começar
e mesmo assim começando.
tantas palavras que eu podia morrer sufocado
podia levar um tiro
polindo minhas armas novamente
sem saber se estavam carregadas.
mas eu estava subindo de novo
e sabia que daria errado
enquanto estivesse subindo
mantendo o ritmo
sem pressa, mas indo
livre do medo de ser um retardatário
na corrida para o futuro da arte
livre do medo do futuro, com ou sem arte
livre do meu sonho de infância
que me embalou, aprisionou, silenciou
mastigou e cuspiu fora séculos depois
vivo.
pronto para a revelação e a magia.

 

 

MINHA , NÃO

não é a loucura de vang gogh
incendiando os milharais da mente
não é a loucura de charles bukowski
tigre arrancando tiras de sua pele
nas jaulas da américa
não é a loucura de carl solomon
estado policial roendo seu calcanhar
nem a de bispo do rosário
em seu apocalipse artesanal
nem a de fernando diniz
engenho dentro do silêncio
é a loucura estéril, triste
e sem brilho
de quem roubaram a vontade
apontando uma faca enferrujada
para o centro de sua alma
é essa a loucura
de que tenho que me safar
quase todos os dias
estéril, triste e solitária
indigna de um poeta, você disse?
não, meu amigo
indigna de um homem
qualquer um

 

 

UM GATO AMARELO

o gato amarelo
vai ter que esperar pelo seu poema
por mais algum tempo
na porta da igreja de são francisco
vai assistir a velha senhora trazer sua ração
entre indiferente e esperançoso
o mesmo ar com que me encara
quando cruzo a praça apressado
mas não o bastante para ignorá-lo
o filósofo da gangue
o alquimista da fome

por mais algum tempo
esse é o único alimento que ele vai ter
meu amigo amarelo vai esperar
até que eu tenha algo mais que ideias
nessa cabeça cheia de poemas
até que eu tenha mais que habilidade
de arranjar as palavras para ele
de um jeito que ele entenda
e todo mundo entenda
o que as palavras não disseram

velha alma autodidata
ele conhece um pouco de zen das ruas
então sabe que estou sendo sincero
e não ficará nem um pouco ansioso
o problema são as pessoas
elas continuarão ansiosas, apressadas
e famintas da ração diária
da mesma poesia que elas rejeitam
e que continuamos jogando no prato delas
todos os dias
até que finalmente resolvam provar

 

 

Fernando Abreu é maranhense de São Luís. Viveu na cidade de Grajaú, interior do estado, até os 13 anos. Durante cerca de dez anos editou a revista de poemas Uns & Outros, ao lado de outros integrantes da Akademia dos Párias, grupo que agitou a cena literária na capital maranhense entre o final dos 80 e meados dos 90. Tem quatro livros de poemas publicados: Manual de Pintura Rupestre (7 Letras, 2015), Aliado Involuntário (Exodus, 2011), O Umbigo do Mudo (Clara Editora, 2003) e Relatos do Escambau (Exodus, 1998). Prepara a publicação de nova coletânea para o segundo semestre desse ano. Como letrista, tem parcerias com Zeca Baleiro, Chico César, Marcos Magah e Nosly, entre outros. Tem poemas publicados nas revistas Germina, Modo de Usar, Sibila e Poesia Sempre e no Blog do Antonio Cicero. Mantém o blog Homem Comum, onde publica basicamente poemas.

 

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