CANÇÃO DE NINAR
Amanhã, bem cedo, acordarei e escreverei poemas,
E despertarei mais crianças do sono da consciência.
Direi a elas, do fundo da floresta das palavras virgens,
Que o tempo é de vigília e permanente assombro.
Porque aves de rapina vêm engolir nossos sonhos,
E querem nos roubar até o que ainda não temos.
Por muito tempo velei o sono tranquilo das crianças.
Mas urge acordá-las, enquanto ainda é tempo.
Porque ao fim do dia temo que os lobos e hienas,
Com uivos e risos, devorem toda a existência.
O tempo não é mais de palavras leves e serenas.
O tempo é de palavras duras, ásperas e intensas.
Por isso, acordarei mais cedo, por entre as feras,
E despertarei crianças do sono da consciência.
A ÚLTIMA SUBTRAÇÃO
Alguma coisa falta
Aos mortos sem os lábios.
Talvez a inútil graça
De quem ri de soslaio.
Quem sabe uma adaga
Ao fim de outro adágio.
Um grito meio peralta
Entre o vício e o plágio.
Quem sabe outra fralda
Após mais um desmaio.
Uma mesa bem farta
Com que sirvo o lacaio.
Talvez a morte exata
De um chinês ou malaio.
Ou mesmo a alma em asma
De antigos dinossauros.
Talvez o sexo em magma
De amantes bem devassos.
Talvez um gozo em Málaga.
Talvez a mão no mastro.
Alguma coisa brada
No pó dos mortos flácidos.
Uma voz muito fraca
Que ouço após um naufrágio.
Alguma coisa parca
Que é a soma do escasso
Com que conto as larvas
Que devoram o abstrato.
Alguma coisa vasta
Que finjo ser orgasmo,
Logo após uma farra
Entre o coito e o espasmo.
Alguma coisa casta
Que penso ser o falo
De um deus que se castra
Ao som de todo escárnio.
Alguma coisa gasta,
Que logo entra em colapso,
Com a angústia clássica
De mortos bem honrados.
Alguma coisa vaga
Que leio nos decálogos,
Com a saudade laica
Dos mais rudos centauros.
Alguma coisa ingrata
Que lembra até o diabo,
Com seu riso de fada
E os olhos bem estrábicos.
Alguma coisa em brasa
Que vem dos holocaustos,
Com a fúria das fardas
E o inferno dos átomos.
Os mortos são tua saga,
De vasto anedotário.
Ainda ontem, em meio às traças,
Ouvi o som de seus passos.
O ILUMINADO
Ouvi falar esses dias
Que o bom mesmo é escrever poesia em prosa
Que os sonetos e rimas estão velhos e fora de moda
E os poetas são os últimos espécimes
De uma antiga e banida estirpe de artistas da palavra
Que já entrou em extinção há vários séculos
Ou mesmo há milênios,
Quase ao mesmo tempo
Que os dinossauros
Ou as testemunhas de Jeová
Às portas do dilúvio.
Eu, contudo, continuo tangendo os meus céticos instrumentos
Toscos e ultrapassados
E compondo poemas destituídos
De toda glória e encanto
Ante os incrédulos de todo tipo
Da enorme plateia
Desses tempos estranhos
De ídolos de barro
E versos de antanho
Sem chaves de ouro,
Soldo ou salário.
No entanto, ouvi dizer esses dias
Que existe um poeta capaz de arrebatar multidões,
Que os seus poemas são feitos de metáforas de outro mundo,
De sons irados e ritmos da hora,
E que cortejos de fãs desesperados e loucos
Seguem o pó de seus passos e rastros
Ao longo de uma high-way de destinos destroçados,
Acompanhados por guitarristas cegos, surdos e mudos
Que entoam cânticos e salmos apocalípticos.
Como não tivesse nada o que fazer
Resolvi então seguir aquela procissão de idiotas,
Almas penadas e múmias paralíticas
Rumo ao horizonte infinito daquela high-way
Apenas talvez para ouvir os sábios ensinamentos
Do vate perfeito e extraordinário.
Ao chegar ao fim da longa jornada
Sentei-me sobre um confortável chão de palha
E deparei-me com um templo de pórticos abstratos
Ante os quais os meus olhos maravilhados
Contemplaram enfim a face terrível do poeta iluminado
Em estado de transe alucinatório.
Então cheguei-me aos seus pés em posição de lótus
E indaguei, entre gagueiras e rodeios,
Qual o segredo de seu estilo, técnica e poética
E o significado de todo o cosmos.
Então ele se levantou, e com a mão suspensa,
Mostrou o dedo médio, e disse:
“Vão à porra todos vocês!”.
Então abrimos os olhos
Como que despertados do sono da ilusão
E houve luz em toda criação.
Ricardo Leão é o nome literário de Ricardo André Ferreira Martins, nascido em 2 de março de 1971, em São Luís do Maranhão. Participou ativamente da vida literária maranhense da década de 1990, em grupos literários, como o Poeme-se, Curare e Carranca, com outros pares da cena cultural de sua terra natal. Foi premiado, entre outros, no Festival Maranhense de Poesia Falada (Menção Honrosa), Prêmio SESC de Poesia, Prêmio Literário “Gonçalves Dias” (primeiro lugar na categoria Poesia e em segundo na categoria Engenho e Arte), este último em sua primeira e única edição. Em 2012, foi o vencedor do Prêmio de Ensaio e Crítica Literária da Academia Brasileira de Letras, com o livro Os atenienses e a invenção do cânone nacional, resultado de tese de doutorado. Atuou também em vários grupos literários e artísticos de São Paulo, fundando em Rio Claro (2008) o Grupo Auê de Cultura e Artes, em parceria com escritores e artistas locais. Atualmente é Professor Adjunto do Colegiado de Letras da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Campus de Jacarezinho. Ao longo de sua carreira literária, publicou os seguintes livros: Simetria do parto (2000, poesia, Editorial Cone Sul), Tradição e ruptura: a lírica moderna de Nauro Machado (2002, ensaio, SECMA), Primeira lição de física (2009, poesia, SECMA), Os dentes alvos de Radamés (2009, 1ª. Edição, SECMA; 2016, 2ª. edição, pela Benfazeja), No meio da tarde lenta (2012, poesia, Paco Editorial) e Os atenienses e a invenção do cânone nacional (2011, 1ª. Edição, Ética; 2013, 2ª. Edição, Instituto Geia), A plumagem do silêncio (2015, poesia, Nobres Letras), Minimália ou O Jardim das Delícias (2017, poesia, Penalux).
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