Fabulação e o corpo são os experimentos do romance tão fútil e de tão mínima importância
POR FERNANDO ANDRADE
Lembro de uma cena do filme A dupla vida de Veronique onde na ação temos um fundo negro onde duas mãos aparecem mexendo os fios de dois bonecos sendo um, uma senhora, que dá ideia de definhamento, de fim. Temos um cenário que não atua na ação por que estamos presos aos fios que a artista fia com dedos ágeis. Ali, há uma ordem de imprevisão da vida ou do destino, por fios tão finos e maleáveis que o doce sabor do movimento da boneca-senhora parecer romper numa clara alusão à sua existência.
Me lembrei não do mote em si ou a cena do filme com relação ao livro que vou discorrer aqui, o romance do psicanalista e escritor Tiago Franco, Tão fútil e de tão mínima importância (Garamond) mas com a relação de contato ou de lugar com que o narrador fabula, a trajetória de F, com uma inicial apenas, me vem à mente que toda letra só carrega um certa obscenidade projetiva. Com ela somos todos e ninguém, sua identidade é tão fluída quanto saber qual pedaço de água passou por este ou aquele rio. Interessante notar como o narrador, ao mesmo tempo, ocupa um possível espaço do personagem, pois há um lugar do afeto em que jorra as palavras sobre F. Alguém contou esta vida-narração para ele? ou ele esteve com F, juntou informações sobre seu pai e sua mãe, pois sua isenção ao falar de F me diz que ele esteve por perto sem afeta-ção.
Toda a narrativa plugada numa junção de ausência pela figura do Pai, a fabulação de F na projeção dos entornos do progenitor-macho. A ciência analisa fatos, mas ao evento em si, ela se coloca ineficiente. O pequeno F é todo afeto na sua infância, procura modelos de compensação para suprir uma falta, de um ente invisível mas operante nas significações simbólicas. Nos damos ao simbólico através de um corpo vivo, de matéria orgânica com seus fluidos e excrementos. Tiago magistralmente coloca seu narrador à uma distância de um quadro aqui tanto um retângulo figurativo, onde se encontra uma cena pintada-ilustrada, quanto o quadro da distância de um foco, de uma filmagem de uma cena, lembro ao leitor que a arte das marionetes desliza entre todas as artes com o teatro, lugar de máscaras, a literatura a fabulação camuflada em signos sintáticos e ortográficos.
F faz sua morfologia quanto ao exercício de um corpo, o seu, na descoberta de um outro que é um fora, dentro desta especificidade espacial, ele reordenará através, já na adolescência e fase adulta, todo um poder-repertório de seduções em torno de uma sexualidade curiosa e inventiva. Aqui cabe, uma interessante menção a uma parte da narrativa onde ele não encenará em TV ou cinema por achar que não tem o pendor para atuar. Todo seu enlace sexual parte de uma verdade sua, de uma postulação radical de quem F é para quem se envolve com ele. A fragilidade de um personagem talvez o atormente à ponto dele ir para cama com homens e mulheres fazer sexo à três com todo prazer.
Fernando Andrade, 50 anos, é jornalista, poeta, e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemoemetria , e Enclave ( poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Está lançando esta semana o quarto livro de poemas, a perpetuação da espécie pela Editora Penalux.
Be the first to comment