mecânica aplicada, 1
o óleo do motor do mundo, rícino
amargo que corrói o que se sente
enquanto corre nas cânulas, sempre
mais ardente à medida que os círculos
do inferno de catracas moem os fios
frágeis que unem as coisas à placenta
do sentido (imagens que o olho engendra):
o óleo afoga tudo com seu visco.
Poemas têm que ser uma ciência
ou manual da máquina do mundo-
cão, mecânica aplicada ao obscuro
trabalho do motor, sua falência
calculada pelos versos, areia
no engenho, vidro moído na veia.
.
fragmentação
tenho escrito poemas
aos pedaços, espalhados
por e-mails, contra-
capas, guardanapos, mensagens
instantâneas, na verdade
qualquer pedaço de papel
que me olhe com sua interrogação
branca, seu jeito
de esfinge dando bandeira em cima
de um móvel, mata-
borrão de palavras fazendo
pose de papiro, tenho
escrito poemas
em pedaços que não quero
juntar, tenho pedido às canetas
que falhem, às teclas
que emperrem quando
envio cada fragmento
a um destino diferente, rasurando
os vínculos, perdendo
a linha como quem deleta
um telefone importante, tenho
esperado que os amigos
se distraiam com as amenidades
com que disfarço o contrabando
das palavras. Tenho lido
muitos poemas e sinto
tédio frente ao presente
que ainda pretende
chocar quando retiro
os andaimes e o impacto
não penetra além
da película, imagem. Então, pra ver tudo
melhor arranquei
meus olhos e joguei no fundo de um copo
sem fundo – é de lá que passei
a interrogar o abismo
dos céus como um burocrata afogado
em papéis velhos enquanto anjos
sem pedigree entoam salmos
punks de três acordes, distorção
amplificada e loop
frenético diante da parede
transparente onde rabisco
grafites com uma tinta
tão negra que a grande noite
dos séculos não vai deixar
ninguém ler.
zimbório
os céus que se abram e dali se abismem
verdades, meteoritos
riscando o azul impreciso, tear
de gelo em que tais projéteis riscassem fios
de fogo nessa manhã que mais parece um apocalipse
ao contrário
e sem revelação, voz
de sete pedras, não, você
procurando sementes nas frutas todas
sem sementes da primavera sem perdão
em meio a comentários intermináveis, parede
ácida em que olhos escreveram oceanos e suas rendas
oxidadas que no fundo são desertos com peixes
mortos sobre a areia parecendo porcelanas, todos fazendo pose
de iluminura diante do
paraíso (imagem
nenhuma é bárbara o bastante, você
sabe, agora
que seus olhos estão vendados
na frente da grande tela: a única diferença
entre você e os suicidas é que os suicidas parecem não ter
dúvidas).
“onde estão os anjos que não se pode ouvi-los?”
Nydia Bonetti
Nuno Rau é carioca, arquiteto e professor de história da arte, mestre e doutorando em história da arquitetura, e tem poemas publicados em revistas e sites como Cronópios, Germina, Sibila, Zunai, Mallarmargens, Revista Brasileira (ABL), Diversos e Afins, RelevO, em diversos blogs e nas antologias Desvio para o vermelho (13 poetas brasileiros contemporâneos), pelo CCSP | Centro Cultural São Paulo, Escriptonita: pop/oesia, mitologia-remix & super-heróis de gibi, que co-organizou, e 29 de Abril: o verso da violência, ambas pela Editora Patuá e, em fase de organização, a antologia Poemáquina. É um dos editores da revista eletrônica mallarmargens.com
Gostaria de poder escrever poemas como os do Nuno. Grande!!!
Lindos!