Fernando Andrade: Há uma interessante (inter)relação entre gêneros no seu livro, que deve ser lido como um romance mas também achei ter uma urdidura de contos, pensados separadamente. Você acha isso? E se sim, como você chegou à esta forma hibridizada?
Clarissa Carramilo: Sim, é verdade. Acho que a própria narrativa, que envolve uma história ligada ao jornalismo, somada a um contexto cheio de especificidades culturais, como é o caso do Maranhão, possibilita essa inter-relação. Poderíamos dizer que alguns capítulos parecem crônicas, outros contos, mas também seriam coberturas jornalísticas e, portanto, correspondentes a fatos reais dentro daquela história. Nesse ponto, foi decisivo para esse hibridismo levar em consideração a herança da oralidade, ainda presente no imaginário popular maranhense, tradicionalmente uma terra de pescadores. Essa oralidade, que se reflete de várias formas no cotidiano de São Luís, afeta o jornalismo e por que não a literatura também? Então a construção narrativa acabou enveredando por esse caminho. Trabalhar com jornalismo é um desafio nesse contexto, apurando notícias a partir de relatos surreais, que chegam às redações cheios de aspectos fantasiosos, que não cabem ao jornalismo, mas que servem muito bem à literatura. Algumas histórias são inspiradas em fatos reais, com adaptações fictícias, que são carregadas de intencionalidade no sentido de retratar, por meio de personagens e cenários, os atores que formam a São Luís contemporânea. Acho que essa característica contextual permitiu passear mais confortavelmente pelos gêneros e foi decisiva para esse hibridismo.
Fernando Andrade: Me pareceu dentro da sua proposta de mostrar o universo jornalístico as histórias parecem como pautas que Antonela teriam que cobrir na cidade onde reside. Cada enredo tem seu mote, seu universo bem definido. Como foi criar cada enredo? E pensando na cidade como um emblema do que você queria falar?
Clarissa Carramilo: Bom, as pautas que Antonela recebe na verdade foram pautas marcantes em São Luís, dentro de um recorte temporal, que compreende ali os anos de 2012 a 2016, que foi quando eu trabalhei na redação. Então eu procurei selecionar os fatos ocorridos em cenários que me permitisse descrever São Luís na sua singularidade, suas personagens, suas características e, ao mesmo tempo, dentro de um contexto global, tentando fugir da romantização sertaneja tão comum à literatura nordestina e às vezes distante da realidade das capitais, por exemplo, poluídas, violentas e onde a vida é corrida como na maior parte do país.
Fernando Andrade: Você faz uma crítica bem mordaz ao jornalismo. Quais? são hoje a principais especificidades da profissão?
Clarissa Carramilo: É uma profissão muito desgastante em vários sentidos. Trabalha-se muito por salários baixíssimos e muita gente aceita por necessidade ou por gosto, idealismo mesmo. A maioria paga preços altos emocionalmente, nas suas vidas pessoais e acho que a trajetória de Antonela mostra um pouco esse lado da profissão, que ainda é muito romantizada. Ainda se idealiza muito a figura do jornalista de profissional culto, crítico, democrático, vanguardista. A profissão tem atraído um perfil diferente, que lê pouco, escreve mal, com sérios problemas de formação, facilmente manipulável e, o pior, muito vaidoso.
Fernando Andrade: Há um interessante dicotomia que você coloca entre cosmopolitismo e regionalismo, que muitas cidades perdem seus lastros culturais para adotarem padrões culturais de outros universos, lugares. Fale um pouco sobre isso?
Clarissa Carramilo: Há um movimento na cidade, geralmente das elites, de morar fora de São Luís, quase sempre em uma metrópole. Muita gente hoje faz o mesmo movimento de 30 anos atrás, quando as pessoas saíam pra estudar fora da cidade mais pela falta de cursos de pós-graduação, por exemplo, do que pela vaidade. Criou-se a noção, e acho que não é uma particularidade só de São Luís, de que você só é bem-sucedido se morar fora, no eixo Sul-Sudeste ou mesmo no exterior. E é meio bizarro, grotesco até, que ainda se acredite nisso e deixe de olhar pra sua realidade, que muitas vezes oferece muito mais oportunidade de realização do que nas grandes metrópoles. Acho que, no fim das contas, apesar de o nome do livro ter “Cidade”, é uma história mais sobre as pessoas do que sobre um lugar.
Fernando Andrade, 50 anos, é jornalista, poeta, e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemoemetria , e Enclave ( poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Está lançando esta semana o quarto livro de poemas, a perpetuação da espécie pela Editora Penalux.
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