Três poemas de Ana Kiffer

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Foto de Valerienne Lefevbre

 

 

pelô amor

sou aquela baiana sozinha no pelourinho ao madrugar, sou a bandeja cheia de acarajés, sou um acarajé, porque gosto da palavra, sou um camarão seco, a pele retinta, sou retorcida, rachada, revirada, no santo sou aquela pedra limosa, sou o limbo verde, a cauda, o rabo do foguete, sou aquele vazio do mar calmo daqui, sou um vento de nada na cara da gente, sou as brs ocupadas, sou a liga, sou vestido rasgado de flor, sou do campo, sou aquela mulher que foi estuprada ao lado dele, sou aquela que você deixou há pouco, sou a menina com cara de ódio de quem tiramos uma vida, pedindo no posto da esquina uma moeda, sou a cara da moeda, morta em prata, sou a mesa farta sem pés, a cadeira em falso, sou seu cadafalso, a vertigem da vida, sou a porta entreaberta, sou o homem na estação, sou o seu não todos os dias, sou a hora morta do tempo, sou esse peixe vermelho de madeira dentro do quadro, o quadro, sou a moldura, o meio vazio, sou a parede, o prego, o buraco.

 

 

BR

a estrada cortava o rio. imenso. sem fim. às suas bordas as barracas enfileiradas. em cada uma essa espécie de vida. larvar. o estado. a letra. o nome. o título disso que cola à madeira velha. a cor de cada um. um prego. a velocidade dessa matéria inerte. sentada sobre o banco. um olho grudado ali. no desejo daquela borda. as séries infinitas. as combinações possíveis. um mundo margeando as rodas. inexistente. sem ponte. à parte a barriga faminta dos do lado de cá. e a minha vista cansada. de toda paisagem.

 

 

poder-dizer

poder dizer em uma frase que uma mulher poder dizer que é escritora é poder dizer empoderamento porque poder dizer é também saber não saber não saber poder dizer é de fato poder existir engraçado porque poder existir engraçado depende assim do fato palavra da palavra de fato e de que a palavra é fato porque vejam para poder dizer há de haver a palavra e vejam nesse caso de estupro leve e engraçado quando eu já era mulher não havia a palavra empoderamento e eu escrevia mas não podia vejam poder dizer que sou escritora vejam poder dizer poder é mesmo muito recente.             que não nos levem os acordos tácitos da língua isso também que chupa a palavra e incluso poder dizer como ele que não chupo quer dizer que não faço parte poder dizer não poder poder o impoder dizer por fim que não faço parte do sistema vampiro que chupa, vejam os dentes que me levaram.

 

 

Ana Kiffer é escritora e professora da Pós-Graduação em literatura, cultura e contemporaneidade da PUC-Rio. Colunista da Revista Pessoa. Blogueira do Mar da Carne. Autora dos livros Tiráspola e Desaparecimentos (Ed. Garupa, 2016); A Punhalada (Megamini, 7Letras, 2016); Todo Mar (Ed. Urutau, no prelo) além de outros títulos, artigos e poemas espalhados por aí.

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