Tággidi Mar é escritora, preparadora de textos e professora de Literatura. Tocantinense de origem, morou em Goiânia, Campinas e Dublin. Reside em São Paulo capital desde 2008. É bacharel em Letras pela Unicamp e pós-graduada em Filosofia pelo Mackenzie. Autora dos blogs Subvertidas (2011/2013) e Chistes e Poesia (2007/2014). Em 2017, foi premiada com a bolsa ProAC de criação literária pelo projeto Queixote e Pança em: As Histórias que nos Perseguem, romance infanto juvenil a ser lançado no segundo semestre, pela editora Hedra.
I.
O ferro nas pontas do chicote
Sangue escorre lágrima não nunca
Culpa, culpa, minha máxima culpa
A antecipação do corte pinça o nervo
E, ai, um gemido breve tensão crua
Culpa, culpa, minha máxima culpa
Respiração represa em átimo até
Na carne lacerada a unção do anjo
Gozo, gozo, meu máximo gozo
II.
a língua em saliva de um cão sedento
o choro em agudo de um cão solitário
o riso em escravo de um cão grato
o humano decantado
do corpo em desespero
III.
quando os meus se forem
que eu possa chorá-los sem tempo para as lágrimas
que eu viva na morte um silêncio tão profundo
que todo burburinho dos graves enterros do mundo
seja para mim somente
uma prece em uníssono
IV.
As vozes indistintas na praça em frente a minha janela se elevaram
Era madrugada
(A despeito do volume e da agitação feroz daquelas ondas sonoras
Era madrugada)
Uma a uma, as luzes dos prédios acenderam-se em orquestrado pacto
Era ainda madrugada
Das varandas, camisões de celular à mão impacientavam os passos
Era menos madrugada
De um terceiro andar, o ‘shhhh’ ordenou o silêncio ao povaréu animado
Era um pouco a madrugada
‘Estou chamando a polícia!’, alertou do sétimo um senhor pigarrento
Eram os restos da madrugada
‘Cala a boca!’, ‘Os trabalhadores querem dormir!’, ‘Fora, vagabundos!’
Eram uns laivos de madrugada
‘Petista!’, ‘Golpista!’, palavrões pesados. Alguém tentou chamar à razão
Era mais não madrugada
As vozes indistintas mantiveram-se indistintas, embora tenham revidado
Aumentando as notas do arrebol
Então nasceu a manhã
E todos se recolheram fatigados
V.
Em terra de rei, rainhas e peões fazem-se de cegos
Cavalos ladeiam castelos pisando os corpos dos cavaleiros
Na linha do horizonte uma montanha de porvir
É encoberta pela fumaça dos desejos esquecidos
VI.
Que esse cansaço seja antes
O sumo, a essência cítrica da chama
Bile em êxtase que se derrama
Gengiva jorrando o sangue quente
Antes irritadiço, nervoso e líquido
Paranóico, histérico, cínico
Incontrolável desejo do abismo
Prestidigitador cismo
Antes tudo antes que apenas
Uma vontade de sono, um dengo
Uma prece chorosa, uma querência
Antes tudo antes que apenas
Do corpo torto o desapego
O ir-se embora, cadente
VII.
Os homens gordos de certezas
Os homens satisfeitos consigo
Os homens plenos de realizações
Foram um dia crianças
Abriram olhos narinas mãos papilas
Ao universo da alegria fresca da vida
Disseram-lhes os rancorosos
Arrogando-se sabedoria grave:
“Os limites são claros
Conhecidos há muito”
E, crianças, por amor e cortesia
Creram
Obedeceram
Murcharam
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