Do livro Plástico pluma, 2018
atabaques
sim, atacados os atabaques
certos timbres de couro proibidos
certos nomes de entidade
doces de Cosme e Damião
lá onde rasga insistente o motor da moto
e empinada a roda toca a lua
na madrugada de morros e encruzilhadas
e a luz azul neon na cruz da matriz
e no letreiro próximo do motel
e o pisca-pisca no manto da virgem
e seu rosto imaculado de manequim
alvo como o da modelo de peruca
na loja do outro lado da rua
um troféu de cimento e latão dourado
da altura de uma criança de dez anos
garrafas de cerveja derramando-se dentro
da copa, do grande cálice
a ser passado de lábio em lábio
mas primeiro nos do goleiro
que em seu salto de jaguatirica
afastou o último pênalti
garantindo o campeonato inédito
atual maior herói da galáxia
e no perímetro não há balde ou bacia
que já não tenha virado tambor
em contra-ataque indiscutível dos atabaques
e da música liberada dos terreiros.
poema preto
“Se soubessem o valor que a nossa raça tem,
tingiam a palma da mão pra ser escura também!”
Racionais MCs
para Luanda e Fidel
i.
ó mar salgado, quanto do teu sal
são lágrimas de guiné-bissau!
as tristezas, as misérias, o horror
ainda não indenizados,
perpetrados por malditos reis,
brancos, pretos, pardos.
sequestrados de língua, história, paisagem,
fé, poemas, vizinhos, idades,
santos, deuses, entidades –
povos roubados em seus séculos de
digno viver e majestade.
ó mar salgado, quanto do teu sal
são lágrimas de guiné-bissau!
ii.
os filhos primogênitos
da mãe ciumenta, da mãe com tranças
amazônicas nos cabelos, dos filhos
exímios na palavra, na crença, na dança,
povo de aliança íntima com a terra,
povo com o poder de polvilhar o céu
de fogo, cometas, raios, poeiras.
– a dançarina metamorfoseia o calcanhar
em bico de papagaio no jogo da capoeira.
iii.
porque dançar as músicas daqueles que assassinamos?
– ou será que eles é que agora dançam seus amos?
iv.
o padre, o físico e o intelectual decretam:
– o preto é a ausência de luz.
ao que o poeta responde:
com todas as cores misturadas
é que aparece a cor preta,
todas mesmo, até aquelas
hoje apenas imaginadas.
o prisma preto no som é mistura de vozes
de criança, mulher e homem,
que vibram o chocalho místico na cintura
e no passo rápido da ciranda,
ao som do timbre rouco do saxofone
e dos decibéis sincopados do jazz.
um amigo me diz:
– preto é cor de luto,
pelas lutas passadas,
pelas lutas por vir,
luto!
e sendo o preto mistura de cor,
é também de todos os povos que resistem
aos poderes do branco apagador,
onde for, em casa, na esquina,
seja ali na favela do haiti,
seja lá no quilombo árabe de gaza,
na palestina.
v.
um velho bem intencionado disse
que o sangue de todos é vermelho.
a alma, se tem cor, deve,
sendo imortal e primeira, ser preta.
mas destas questões alquímicas,
a única diferença química que me interessa
eu aprendi cedo com uma menina:
o nome da substância que enche de mel a pele
é melanina.
* Tomaz Amorim Izabel, 30, é poeta, tradutor e doutorando em Teoria Literária pela USP. Plástico pluma, seu livro de estreia, será lançado em setembro de 2018 pela editora Urutau.
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