Passeio – conto de Jorge Ialanji Filholini

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PASSEIO

Por Jorge Ialanji Filholini

 

Hoje é dia de passear. Vestido em cima da cama. Só falta passar o ferro nas laterais amassadinhas. Perfume e bolsa. Hoje é dia de passear. Meu neto vem me buscar. O único dos nove filhos e doze netos que sai comigo. Não se incomoda. Sempre quando pode me leva no seu carro. Enorme. Quatro portas. Ar-condicionado. E um banco de couro confortável. O meu neto é o meu orgulho. Não se esqueceu de mim. E quando saímos no domingo jamais perdeu a hora de me trazer de volta para assistir o programa Silvio Santos.

Betinho buzina três vezes. Desço e deixo a chave para o Ernesto, porteiro daqui do prédio. Meu neto me aguarda. Abre a porta como um cavalheiro. Que orgulho. Quando chove, Betinho faz questão de sair do carro e me trazer até o banco de passageiro. Segurando um guarda-chuva do tamanho de um sombreiro, enxuga com estopa os meus sapatos. Vamos embora, vovó? Vamos.

Desce a Augusta. Passa na Frei Caneca. Dobra em direção à Consolação. O que eu fazia a pé nos tempos demoça, hoje passa na velocidade que o meu neto quiser. Pessoas passageiras. Lojas sem tempo de parar. Preciso ir ao banco antes. Tudo bem? O que quiser, Betinho. Ele é o único a aceitar a companhia de uma idosa. Adora escutar as minhas histórias. Tá vendo ali naquela esquina? Seu avô me deu o primeiro beijo. Uma delícia. Betinho ri. Pede para continuarmos depois. Ele precisa resolver um pagamento rapidinho. Antes de sair coloca o Francisco Alves no rádio. Um encanto. Me transporta de volta aos bailinhos. Sofre a tua dor resignadamente / Sofre como eu sofri por ti também / Sofre, que esta dor vai ensinando a gente / Que amar é um dia querer bem.

Lá vem o Arnaldo. Acenou para mim. Reconheceu o número da placa. Encosta na janela. Dona Carina, de novo por aqui? Arnaldo coloca a flanela no ombro. Aperta a minha mão. Hoje está calor, não vai sair do carango? Aguardo o meu neto, foi resolver umas coisas ali no banco. Eita, dona, toda vez ele cola lá, haja conta. Betinho é um homem ocupado, mas sempre consegue tempo e me leva para passear. Justo, dona, você merece passear, mas está aí parada. É rapidinho, ele já vem. Tá certo, bom passeio, dona, vou lá trampar, tenho possantes para olhar.

Lugar estocado de carros. Betinho demora o tempo de um passeio dentro do banco. Tudo bem, ele se deu ao luxo de me buscar em casa. Tem um coração do tamanho da minha idade. Vai viver bastante. Rezo toda a noite por sua alma. Na missa, o seu nome está escrito no livrinho de orações do padre Augusto. Vai ter brilho assim lá longe. Meu neto. Meu amor. Quando consegue sair cedo do banco, me leva para tomar sorvete. Eu me sento e Betinho pega Pistache e Flocos, os meus sabores favoritos. Antes de escurecer, me deixa na portaria do prédio. Passa a minha mão para a de Ernesto. Dá a bênção e diz até logo. Meus outros netos só me falam adeus. Nunca mais os vi. O último natal não foi amigável. Filhos resolveram colocar algumas pontas soltas em cima da ceia. Foi uma confusão. Tem irmãos que não se falam até hoje. E eu que sofro. Já tentei de tudo para a reconciliação. Almoço de aniversário. Domingo de Páscoa. Nada. Foram facas e pratos para o ar. Desisti. Me isolei no apartamento que era de mamãe. Quem quiser me ver que venha. No dia dos meus sessenta anos decidiram me surpreender. Fizeram uma festança. Com direito a bolo preferido. Qual é mesmo?

O presente de Betinho foi o cartão autorizando o estacionamento para as vagas de idosos. Ele que emitiu para mim. Mas não dirijo faz décadas. Sempre tem o retorno, eu te levo. E foi assim que começaram os nossos passeios. Banco. Cartório. Seguro. Prefeitura. Secretaria de Cultura. Trouxe a plaquinha, vovó? A pergunta depois da bênção. O quarteirão lotado de carros. Não intimidava Betinho. Sempre tinha a vaga para ele estacionar. Já volto, vovó.

As vantagens de sair de casa é estar disponível para viver. Ver pessoas. Gente circulando para não sei qual destino. Mas estão andando. Eu me sinto assim, caminhando. Graças a Betinho. Meu neto me leva para todo canto. Eu vejo a mudança da cidade. Quando eu morrer vou deixar tudo para Betinho. O apartamento e a plaquinha de idoso também. Ele gosta muito dela.

Ficar em casa só me faz contar as horas para morrer. Betinho me instiga. Pede para falar os momentos marcantes da sua infância. Solto a língua. Falo do dia em que nasceu. Dos banhos e fraldas trocadas. Ele se envergonha. Ri junto. Meu neto não me deixa sozinha. Faz planos nos dias em que passeamos. O que quiser, Betinho. Sei que no final ele vai parar na sorveteria.

 

 

Jorge Ialanji Filholini é escritor, editor e produtor cultural. Administra o site Livre Opinião – Ideias em Debate (www.livreopiniao.com). O conto “Passeio” faz parte do livro Somos mais limpos pela manhã (Selo Demônio Negro, 2016), finalista do Prêmio Jabuti 2017, na categoria Contos e Crônicas.

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This Article Has 2 Comments
  1. Andrea ialangi Reply

    Lindo conto! Realidade dos dias de hoje, detalhes ricos de informação! Que Deus permita que todas as vovós e vovôs tenham um netinho assim! Adorei! Parabéns

  2. Rita Almeida Reply

    Por favor , Passeio e Desamparo fazem parte Da linguagem do Modernismo? Usam o fluxo da consciência?
    Sou apenas uma vovó que ama Literatura e procura estudar apesar da idade.

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