Três poemas de Tuca Zamagna

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A Senhora dos Caídos

É quando a manhã já amadurece
e o sol rebola até o céu cantar azul
que a Senhora dos Caídos aparece
e faz mesuras cheias de compaixão
pelos meninos de nariz escorrendo
e pelos velhos bem encarquilhados,
dá flores para as mulheres cansadas
sorrisos para os cabras macambúzios,
safiras e rubis para os loucos de pedra.

Tem tremor nas mãos e febre no olhar
a Senhora dos Caídos – e não precisa
de pios para chamar os passarinhos,
que voam às centenas em torno dela,
nem de carne e ossos para convocar
todos os vira-latas das redondezas,
e eles a seguem sem dar um só latido,
mas abanando o rabo e fazendo festa
para cada um que deles se aproxime.

Um dossel de luzes coloridas banha
todo o trajeto da Senhora dos Caídos
e seu séquito de animais enamorados.
Vão pelas ruas até que a tarde finde,
quando então a Senhora dos Caídos
se recolhe à sua caverna na floresta
com os braços cansados de carregar
todas as dores, mazelas e tristezas
que amealhou durante o dia inteiro.

(O cansaço parece não abater nem
um pouco a Senhora dos Caídos, que
há séculos se mantém jovem e bela.)

.

 

Carro de boi

Escancarar a janela
que dá para arranha-céus,
ver pessoas nas calçadas
a se atropelar apressadas
e carros engarrafados
xingando a mãe com
o rosnado das buzinas.
No meio do trânsito,
quebrando a sofreguidão,
um improvável carro de boi
carregado de crianças
e melancias sorrindo.

 

 

O morto que mora em mim

Trago dentro de mim um cadáver,
um ser sem eira nem beira que decidiu
encontrar no meu âmago a paz eterna.
Dele, nada sei, exceto por sua paixão,
desvairada, pelo meu irresistível caos,
seu jeito manso de morto a me dizer:
“Não arrume nada, não ponha no lugar
um alfinete que seja, qualquer lembrança
de um fato maior que só tem importância
por estar deslocada no tempo e no espaço.”

Esse morto que mora em mim não fere
nenhum de meus princípios, nem interfere
nos meus mistérios e nos meus segredos.
Nosso único elo se dá por mera oposição:
quanto mais eu envelheço e me esgarço,
mais iluminadamente jovem ele se torna.

 

 

 

Tuca Zamagna é poeta, humorista e compositor. Escreveu seu primeiro texto (um poema) aos 9 anos. Publicou suas primeiras produções em 1966, aos 16 anos, sob o pseudônimo de Anga Mazle, uma jovem e humilde musa que o habitava. Desde então escreveu para inúmeros jornais, revistas e, durante dois anos e pouco, para a TV, como roteirista da Escolinha do Professor Raymundo. Publicou dois livros, ambos de poesia e prosa, assinados pelo heterônimo Seu Juca Sem Fio, um andarilho cheio de tiradas filosóficas e causos geralmente surreais.

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This Article Has 2 Comments
  1. Tuca Zamagna Reply

    Obrigado pela oportunidade, Jean Narciso. Abraços

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