Resenha do livro de poemas Bigornas da poeta Yasmin Nigri

AYASMIN - Resenha do livro de poemas Bigornas da poeta Yasmin Nigri

Yasmin Nigri. Bigornas. Editora 34

 

 

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Fernanda Drummond

 

 

 

 

 

 

 

 

As bigornas de Yasmin Nigri já começam a vandalizar pelas orelhas. Nas dobras da capa do livro, o também poeta Tarso de Melo chama atenção para as funcionalidades da bigorna: compressão, moldagem, (implosão). É um elemento presente em oficinas, logo, a arquiteta Lina Bo Bardi, na altura da fundação do Teatro Oficina, pôs no cimo de sua fachada a imagem de uma bigorna, que desde então passou a ser o símbolo da companhia. Pronta a ser arremessada de cima mediante a detecção do fracasso, a relação da bigorna com a cultura já tem algum lastro, e é esse exame que Nigri propõe no seu primeiro volume de poesia.

fracassar eu fracassei
mas antes arremessei
poemas
como bigornas
fracassei
e ao fracassar
ao menos fui
eu mesma
a régua
(“Poemas como bigornas”)

Não só examina uma imagem que atravessa superfícies midiáticas (do desenho animado à história da industrialização), mas propõe a sua própria imagem: ser esmagado por uma bigorna confere o solipsismo de ser a medida de todas as coisas, ao se criar uma própria figura, mesmo que incompleta, malograda, “fracassada”. Para uma poeta que passou pelo percurso e crivo da academia, é preciso sempre escrever contra uma tradição que tende a oprimir e sufocar a criatividade, ao mesmo passo que é impossível se libertar de diversas referências, como Protágoras em si mesmo ou Adorno, objeto de estudo da poeta acadêmica. É desse lugar que fala uma “feminista acadêmica” quando se pergunta sobre usos de crase, citações ou “por que diabos insisto nessa profissão”, como diz Chico Buarque num vídeo em erra a letra da música num show ao vivo:

pagando um preço alto
pelas escolhas que fiz
numa época em que não havia
a menor condição
de eu escolher qualquer coisa

dirá, em “vida adulta 2”, parte do ciclo de poemas “Dilemas de uma feminista acadêmica”.

Ao mesmo tempo, penso que o grande triunfo de Yasmin Nigri serão os poemas cotidianos. Quando terminar o livro, você provavelmente vai lembrar dos banhos em dupla, do jantar com lentilha ou de um namorado que leva bombom e balas de presente, como se recapitulasse cenas simples em um relacionamento recém-acabado.

estava no banho
quando pela primeira vez
você rompeu uma barreira
abrindo a porta do box
se unindo a mim
ri de nervoso
[…]
anos mais tarde
você contou
foi nesse dia
que comecei a me apaixonar
mas era mentira

(“Frank O’Hara”)

Imitando um pouco a movimentação caudalosa dos poemas que O’Hara legou aos seus herdeiros contemporâneos, não só nesse poema mas no livro como um todo, Yasmin adota a dicção coloquial, a transferência do real imediato, fala não de coca-cola (“Having a coke with you” é um dos mais celebrados poemas do poeta da escola de Nova York) mas de pastilhas Garoto, itens que já se tornaram tradicionais ainda no século XX e permanecem como modus operandi no XXI. Ela se banha com um Frank de maneira intimamente similar à com que Angélica Freitas entra na banheira com Gertrude Stein: se Angélica cava para si um lugar na ocupação quase total da banheira (gertrude stein tem um bundão/ chega pra lá gertudestein e quando ela chega pra lá faz um barulhão), Nigri vai mais timidamente, com terror de intimidade, se postando lado a lado com o panteão – e o fato de que “era mentira” se relaciona muito a ilusão biográfica que, diria Bourdieu, organiza vidas de maneira horizontal. Querermos saber sobre a vida dessa mulher confundida ao eu lírico e bem exposta, o que pode dizer bastante sobre o status da paixão por poéticas de autoria feminina nesse fim de década.

Adiante na mesma seção observamos nos títulos um elenco de autoras mulheres com quem pressupomos que se estabeleça uma relação intertextual – inclusive com Angélica Freitas, com quem traçamos um paralelo há pouco –, embora ao fim e ao cabo se configurem como outros personagens com quem convive, “divide a mesma solidão” ou que lhe “pede em casamento”. Nigri conta ainda que, ao publicar alguns poemas de Bigornas na revista Piauí, por volta de um mês antes do lançamento, recebeu mensagens de um leitor que pensou que ela e Ana Martins Marques fossem namoradas, sugestionado pela leitura do poema que leva o nome da poeta mineira.

Diz-se do gênero romance que ele só triunfou porque soube representar e fazer ser visto o seu próprio público – a burguesia. Se quisermos um banquete na representatividade lgbtqi, a terceira parte, Mulher Malevich, tem delírios sáficos com pitadas platônicas. As mulheres nas obras do pintor abstrato russo não têm rosto, são construídas de formas geométricas, como a longa tripa de versos dessa seção. Também nela há uma alegre (ou grave) intertextualidade com Sophia de Mello Breyner Andresen que, sem ser explicitamente citada como ocorre com outros poetas ao longo do livro, merece a repetição de um fragmento de verso no título “Terror de te amar”:

digo tudo num verso convulso até tombar
                                              [brandamente

só o peito permanece
sítio frágil

É de se reparar que, à medida que nos aproximamos dos últimos poemas, é na seção que dá nome ao livro que encontramos os poemas mais enxutos, como se o rigor de fundição e formatação exigido pela ferramenta bigorna tivesse cortado ao meio o verso. Como quer que tenha sido a divisão do livro em quatro partes, entende-se que os eixos temáticos por que Bigornas passa faz com que Nigri tenha preferido a técnica do enclausuramento à da dispersão de assuntos. É essa quarta parte contém dois poemas que referem bigornas: um de abertura e outro de fechamento da seção.

Depois de Auschwitz, como duvidava Adorno, não obstante os horrores que continuaram a cair sobre nós, a poesia permaneceu possível. Mesmo que seja aquela poesia da hora sombria: “sempre fui noturna/ crio situações impossíveis quando todos querem dormir”. Que a poesia de Nigri esteja presente para nos acordar.

 

 

**

Yasmin Nigri (1990), nasceu no Rio de Janeiro, é poeta, artista visual e mestre em Filosofia (UFF). Integra o coletivo Disk Musa. Participou da antologia 50 Poemas de Revolta (Cia da Letras, 2017) e é colaboradora da Revista Caliban. Bigornas (Editora 34, 2018) é seu livro de estreia.

Fernanda Drummond é doutoranda em Literatura Portuguesa pela UFRJ, tradutora e revisora textual. Quem sabe, um dia, poeta. Vive em Niterói e tem desenvolvido pesquisas na área de  poesia escrita por mulheres.

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