COMO UM CORPO QUE NOS CRESCE POR DENTRO – 5 Poemas de Erebus, de Manuel Neto Dos Santos

 

I

Atiro as palavras ao papel como murros à poeira dos dias ou os pés às poças depois das primeiras chuvas. Retomo a viagem para lugar nenhum, lá, por onde a voracidade das sombras engole a luz diurna, por inteiro, e o amor desliza até à raiz do poema.
Atiro as palavras, como seixos lançados pela fisga da ilusão e a quietude do lago das horas deixa de ser mar morto e revela-se maremoto agigantando estátuas na forma de saudade, para que a alma viva pela invenção do olhar.
Atiro as palavras às portas entreabertas da demora, como bandeiras rasgadas ou a flor de pétalas, semicerradas, prometendo a invenção do beijo, todo ele, feito de cor e de cor, sem decoro. São redondas, como rodelas, as melopeias tristes dos cansados de viver uma ínfima existência enquanto as ervas tenras apregoam um verde viçoso, coroado de pérolas de chuva.
Atiro as palavras no gesto da arte mágica, ao som do coração, palpitando na vizinhança da morte, quando redijo frases curtas no embate acidental com o silêncio, quando os meus olhos seguem pela vida e o sol pede de volta…as gotas que estavam sobre as tenras ervas. E sobrevivo neste glaciar de tristeza, rujo da cratera de Erebus (como um corpo que nos cresce por dentro) na equidistância gélida e insubmissa por não me conhecer ainda. Sou a voz do fogo que sopra junto ao ouvido e na minha alma não há nem deuses nem demónios; apenas a lava que me lava pelo fogo, o ar do espírito de todos os mendigos ou, perante uma aurora cintilante como artifício boreal, neste glaciar de tristeza…eis-me derrocado, numa avalancha que se derrete, solidifica, e cresce numa montanha que apenas de longe se deslinda.
Seja feito, pois, o verso inicial jorrando das nocturnas claridades para que deslize, ao longo da folha, da clausura gelada das letras, luz bruxuleante do candeeiro a petróleo…de infância.

 

 

II

A palavra é a minha sede de partir, o bramido do silêncio com as suas mãos suaves, respirando em todos os meus sentidos.

A palavra é um navio que passa com o movimento de um pássaro; sem deixar outro sinal que não seja a nudez com o fulgor e o brilho de uma pedra.

Com o azul da água, escrevo as rosas que desenho no teu rosto e o teu sorriso tem as espirais sonoras de um par de asas de fogo…para incendiar a minha alegria.

Como um estame de suave cristal, um grão de terra dorme, ainda, na adolescência dos meus sonhos.
Caminho pelos espelhos e pelas folhas…o teu nome? Um estame de cristal com o sabor que ma minha língua se dissolve.

O fundo de tudo está gravado no meu sangue, como um deslizar de carícias ou o início da lentidão de esboços fugidios.

Há uma voz, sem latitude nem amarras, subtil e sucessiva, como a brisa sobre a água ou a límpida tristeza de me dizer,

 

 

III

Há um tremor de sangue antepassado com aqueles primeiros voos que devolvem a sombra, sem pátria conhecida.

Há um tremor de sangue e os dias em que a lua me ensinou numa praça, em Sevilha, flutuando como a brisa que atravessa os tanques.

 

 

IV

Esta é a nudez intacta, uma ferida iluminada como o esforço das dunas perante o mar, ou o breve afundamento do meu corpo para que o vento de escreva na efémera matéria desmaiada…e mais tarde ou mais cedo, uma flor aberta deponha sobre os meus lábios.

Chove alí fora. Há um céu escorrido pelos vidros. Do ramo da árvore caiu a derradeira folha; o meu coração é uma ilha de silêncio perante um punho cerrado feito de céu grisalho ou o pranto feito de água, deslizando pelas janelas.

Sem cicatriz, sem ruído, assim tomo o caminho de regresso ao tempo, exercitando outras virtudes sustendo, como absoluta verdade, os versos que não soube escrever, mas também as pálpebras fechadas de um beijo para o cego desperta diante da aurora ou do silêncio.

 

 

V

Instalo-me no centro do espaço.
Falar para quê se já perdi o mapa dos dias e hoje tenho o olhar sobre o porto de ninguém e os meus sonhos nada mais são do que escolhos à deriva ou frescos de cal pintados nas paredes viradas ao Sul.

Instalo-me no centro do espaço de cada vez que, de novo, o meu peito levanta muralhas para te esquecer. Que parvoíce pois que o meu corpo, febril, não deixa de te querer…como se o teu sorriso fosse a alegria da minha arte.

Vivo; repleto de tudo com a coloração da promessa da tarde para que o escuro me ofereça a forma dos deuses, como as palmeiras que se diluem no céu.

Num recôndito lugar, há quadros de neblinas onde a luz das abelhas é uma explosão de cor.

Assim és tu também, com a timidez dos sinos ou a vitória das ameias ou, nos Açores, uma praia de lava brilhante de olivina.

Poesia
Vem até mim, com os teus olhos negros como bagas de mirtilos ou os lívidos segredos que tens na tua boca.
Sou uma paisagem de escombros e ostento uma incerta beleza para te oferecer…
Vem até mim e incendeia-me os sentidos e seremos, por breves momentos, madrugadas e estios.
Este sou eu, te juro, que me diz a Arte; a lucidez mais louca.
Tenho por missão desfraldar as luzes…a flor suspensa no final desta página ou um fogo aberto dentro do tecido de um espelho na pirotecnia de me dizer.

Tenho por missão as volutas do fumo ou o silvo da serpente como o sangue na procura de formosos cristais da loucura.

Tenho por missão esta harmonia de contrários, de raízes amarradas às nuvens para que o meu poema seja, finalmente, eu mesmo.

Canto os labirintos da serenidade, deitado com o sonho, pois que a terra é amada pela chuva.

Como amo as cidades quando sou o único caminheiro, pelas ruas estreitas.

Para escutar a noite falando com o silêncio.

 

 

Manuel Neto dos Santos. Nasceu em Alcantarilha (Silves-Algarve) a 21 de Janeiro de 1959. POETA, TRADUTOR. Figura de referência na moderna poesia portuguesa. Homem do teatro, da música, da declamação, activista cultural, desde adolescente. Autor de impressionante e abrangente obra poética, grande parte dela ainda inédita. Nas 23 obras já editadas, espelha-se a sua essência telúrica, remetendo-nos para uma clara e marcada ascendência arábico-andalusa, nos claros sensualismo, ritmo e luminosidade narrativos. A riqueza de todo um léxico onírico, na frescura de uma voz tão livre, única, quanto universal. Trabalhos também nas áreas da escultura, colagens e canto.

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