O CHEIRO CADA QUAL DAS HORAS – 5 Poemas De Dércio Braúna

 

 

METAFÍSICA PELOS DENTES

 

Arrasto a dentes

esses meus dias pelo mundo.

 

É com eles,

com sua inabalável verdade,

que considero a medida de minha fé.

 

Só conheço esse deus

(e seu canto calcário);

o resto é essa lúcida alegria

de saber que tudo é inútil

e, ainda assim, seguir gritando

“esta necessidade

de humanidade

entre nós

que como lâmina

nos fere

e urra

estrondosamente.”*

 

______________

(*Webston Moura. Encontros imprecisos: insinuações poéticas)

 

[do livro Metal sem húmus]

 

*

 

 

DOS PEDAÇOS DE MADEIRA DE DEUS

 

I.

Principio meu mundo

com os restos de madeira de teu deus –

talho minha lira

da humanidade

desse já quase-húmus.

 

Gosto de sonhar o impossível

pelo possível dos pedaços.

 

 

II.

Nada é belo

que não carregue em si

os restos da própria nascença:

uma pobre morte particular

para um dia sem ênfase –

 

em que talvez um violino

console um pássaro só.

 

[do livro Metal sem húmus]

 

*

 

 

Questão à roda dos sábios

 

Meus poetas diletos

não andam em moda.

Na Roda dos Sábios,

suas pedras-palavras,

suas máquinas-de-húmus

já não gozam estima.

 

E mais:

meus poetas diletos

foram embalsamados

pela Roda dos Sábios –

restaram seus ossos

em dogmacídio asséptico.

 

Que faço, eu, agora,

com minhas gozozas

“leituras luteranas”*

de meus diletos poetas?

 

– Decapita os Sábios.

Responde-me um bruxo

sírioórficozombador.

 

_________

(*Waly Salomão. Pescados vivos)

 

[do livro Aridez lavrada pela carne disto]

 

*

 

 

O linho que amarelece o tempo

 

1.

Eu amava a casa de meu pai.

 

Não suas paredes cuidadas,

seu piso lavado, sua cor comum e limpa:

amava as coisas guardadas por seu nome.

 

Amava os retratos respeitados às paredes,

a mobília tranquila e sóbria,

o cheiro cada qual das horas.

 

Amava a poeira silente

sobre os livros,

o gesto pacífico de meu pai

ante eles.

 

Amava as vozes que perdi

e as palavras que não disse.

 

Amava no amor contido que devia.

Amava sem o nome para a coisa amada

(o amor não se diz quando há).

 

Amava os dias habitados

(os que habito na memória de que me visto).

 

 

2.

Mas não amava

(o amor não se diz quando há;

o amor é depois).

 

A casa que amo,

por que amo,

não pode ter havido

como amei.

 

O que amo é meu

(eu sou seu deus, seu pai e seu filho).

 

Não sabia

(quem o sabe ao tempo que devia?)

que

“o amor aumenta

[talvez só exista]

com a amarelecimento do linho”.15

 

_______

(*Al Berto. O medo: trabalho poético)

 

[do livro Aridez lavrada pela carne disto]

 

*

 

 

EXPLORAÇÃO AO REDOR

 

A poesia nunca pôde ser um canto:

seu dizer é uma exploração

ao redor,

e é um latejo

ardendo de dentro

do veio,

é essa “viagem

da mão a seu duelo”,

é palavra que encosta

“o amor e a pedra”.*

 

__________

(* Roberto Juarroz. Poesia vertical (antología))

 

[do livro Como cavalos fatigados abrindo um mar]

 

 

 

* * *

 

MINIBIOGRAFIA

 

DÉRCIO BRAÚNA [1979] é cearense, de Limoeiro do Norte. É bancário e historiador (mestre e atualmente doutorando em história social), com estudos sobre as relações entre história e literatura.  É autor de obras poéticas (O pensador do jardim dos ossos; A selvagem língua do coração das coisas; Metal sem Húmus; Aridez lavrada pela carne disto; Como cavalos fatigados abrindo um mar; Escrevivências); contos (Como um cão que sonha a noite só) e estudos historiográficos/literários (Uma nação entre dois mundos; Nyumba-Kaya; A assombração da história; Sociedade dos poetas vivos).

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This Article Has 2 Comments
  1. amanda Reply

    Quanto conteudo de qualidade encontrei aqui no site. Agradeço por compartilhar. Sucesso

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