Fernando Andrade entrevista Deborah Dornellas

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Deborah Dornellas. Por cima do mar. Editora Patuá. 2018.

 

 

FERNANDO ANDRADE – Li num texto no final do seu livro que você entregou um conto a um professor seu que leu e comentou contigo, isto dá um romance. Como foi este processo de pegar aquela estória curta e colocá-lo num romance? 

 

DEBORAH DORNELLAS – Quem leu o conto e fez comentários foi um colega da pós-graduação em Formação de Escritores, que eu cursava na época, 2013, o Tenório Telles, poeta, dramaturgo e editor amazonense. É por causa da sugestão dele que o romance existe. Após a leitura alguns contos meus, nós conversamos, num intervalo das aulas, e ele comentou, com muita ênfase, que um dos contos, Vitalina, era o germe de um romance, que a protagonista era um heroína brasileira etc. O conto era mais ou menos antigo, e eu não gostava muito do texto, nem tinha percebido o potencial que o Tenório, felizmente, enxergou na protagonista. Fiquei com aquilo na cabeça, perdi duas ou três noites de sono. A ideia de encarar um romance era uma coisa assustadora para mim. Mas, uns dias depois, resolvi que queria experimentar a escrita de um texto de mais fôlego. Logo em seguida, mudei meu projeto final da pós – deixei de lado de a reunião de contos que já tinha começado e parti para a escrita de uma novela. No final de 2014, apresentei as 100 páginas do texto que tinha conseguido escrever, ainda com o título de Vitalina e, em abril de 2015, fui aprovada pela banca. Desde então, comecei a trabalhar no que veio a ser o romance. O processo todo durou uns cinco anos, desde a releitura do conto até o texto final do romance. Foi minha primeira experiência com prosa longa. Do conto sobreviveram apenas alguns elementos: o núcleo do tema, algumas características da narradora, partes do enredo original e, o mais importante de tudo, a protagonista. Sem ela esse romance não teria sentido, sequer existiria. Ao longo dos anos, fui descobrindo quem ela era e que história queria contar.  Devo o romance à Lígia Vitalina e ao Tenório.

 

 

FERNANDO ANDRADE –  A linguagem é a porta de entrada para uma afetividade da leitura. E você consegue através de uma linguagem muito nuançada matizar tanto Ligia quanto todos os personagens do seu livro. Como você se preocupou com este matiz afetuoso e carinhoso tanto com a narradora quanto o percurso narrativo da história?

 

DEBORAH DORNELLAS – Não pensei em colorir Lígia com um tom afetuoso, carinhoso. Ela nasceu assim. O lirismo, a contemplação, o sonho fazem parte da personalidade dela. Imagino que seja sua maneira de sobreviver às adversidades, que não são poucas. No início da escrita, Lígia era melancólica, quase depressiva. Foi mudando ao longo do tempo. Como é ela quem conta a história, quem edita suas memórias, a narrativa toda está contaminada por esse tom afetuoso, pelo olhar dela sobre as coisas, um olhar muito particular. Além disso, acho que a linguagem tem a ver com a minha ligação com a poesia. E com a de Lígia também. Não sei muito analisar isso, mas diria que minha relação com a poesia é mais orgânica do que com a prosa. Pelo menos é mais antiga. Nesse romance, por mais contraditório que pareça, isso veio muito forte. Quando me distraía, já lá vinha um poema, um trecho em prosa poética. Era um lugar confortável, quentinho, conhecido, para mim e para a personagem, para onde podíamos correr, para escapar dos trechos de narração, sempre mais difíceis e desafiadores. Repare que nos momentos de perigo, revolta e emoção intensa, Lígia não consegue narrar, então se refugia na poesia.

 

 

FERNANDO ANDRADE – Brasília tem um peso grande na narrativa, como foi olhar a cidade pelos olhos da sua narradora? você acha que seu livro tem um viés político?

 

DEBORAH DORNELLAS – Cresci em Brasília, no Plano Piloto. Filha de funcionário do Banco do Brasil. Já Lígia Vitalina olha para Brasília da perspectiva de uma pessoa nascida pobre e criada na periferia, negra, filha de uma empregada doméstica e de um candango. É um olhar de fora para dentro. De uma pessoa que vive no entorno de Brasília e olha para o Plano Piloto com um misto de estranheza, fascínio, medo, atração. É uma relação ambígua, às vezes tensa, com choques entre classe sociais, justamente por causa desse apartheid geográfico e social. Nem quando ascende socialmente e vai morar no Plano Piloto, Lígia se sente à vontade no espaço. Quem é de Brasília e conhece a realidade do Distrito Federal vai ter um entendimento mais amplo desse aspecto. É claro que por trás da minha escolha desse ponto de vista para a personagem narradora há uma intenção. Nesse sentido, a história tem um viés político sim.

 

 

FERNANDO ANDRADE–  O livro é uma crítica extremamente oportuna contra o racismo. Como foi situar esta questão no seu livro?  A relação  entre os continentes entre países Brasil e Angola, ficou muito bem colorida por você. Que tipos de relações ou espelhos você queria tirar desta posição do olhar entre Angola e Brasil?

 

DEBORAH DORNELLAS – A questão do racismo pauta a minha vida desde muito cedo. É quase uma obsessão. Nunca entendi o racismo, embora o perceba com muita nitidez. Quase tudo o que fiz na minha vida acadêmica, por exemplo, tem um olhar para o racismo, para a cultura negra. Na literatura, esse é um dos meus temas principais, mas não o único. Nesse livro especificamente, é fundamental. Vivemos num país extremamente racista, ainda mais em relação aos negros. Eu quero e vou falar disso, sempre. Inclusive na minha produção literária. É inescapável. E escolhi o mesmo caminho para Lígia, uma mulher negra brasileira. Muito do meu olhar sobre o racismo já estava lá, no conto original. Só fui ampliando, amplificando ao longo da escrita do romance. Mais para o final, em 2017 e 2018, incluí trechos novos e cenas que tratam do assunto. Para mim, falar de racismo não é uma crítica oportuna, é um tema de vida. Quanto à relação entre Brasil e Angola, e a minha relação com essa ponte sobre o Atlântico, é uma história comprida! Já estava lá no conto também, mas bem menos realçada. Sou uma estudiosa apaixonada das manifestações da cultura popular brasileira de matriz africana, especialmente congado e maracatu, folguedos que têm parte de sua origem em Angola. Por isso, há muitos anos pesquiso e vivencio aspectos da cultura tradicional angolana, trazida para cá pelos africanos escravizados. Muito (bem mais do que grande parte dos brasileiros imagina) dessa cultura sobrevive fortemente até hoje em várias partes do Brasil, no léxico do português brasileiro, na culinária, na religiosidade popular etc. Historicamente, Brasil e Angola se relacionam há séculos. Houve uma troca intensa, e cruel, de pessoas e produtos, entre Luanda, Benguela, Rio, Salvador durante um longo tempo, até o século XIX, que foi ontem. Infelizmente, o Brasil prefere olhar para a América do Norte, para a Europa e dá as costas para a África. Eu quis reaproximar os dois continentes de alguma maneira. E fiz isso criando para Lígia uma viagem de retorno às suas origens, para que se reencontrasse com elas na relação com pessoas que vivem em Angola hoje. Com a diferença de que, agora, ela viaja, ida e volta, por cima do mar e não mais dentro do porão de um navio.

 

 

20180621 174707 225x300 - Fernando Andrade entrevista Deborah DornellasDEBORAH DORNELLAS, carioca criada em Brasília que vive em São Paulo, é escritora, jornalista e artista plástica. Em 2001, concluiu o mestrado em História (UnB) com um trabalho sobre o maracatu nação pernambucano, que a levou para dentro do universo da cultura popular brasileira de matriz africana, sua grande paixão. É também pós-graduada em Formação de Escritores (ISE-Vera Cruz-SP). Em 2012, publicou Triz (In House), uma reunião de poemas. Integra o Coletivo Literário Martelinho de Ouro desde 2013 e participa de todas as publicações do grupo. Cruzou o Atlântico pela primeira vez em 2016, para ver Angola de perto e alimentar-se de histórias. POR CIMA DO MAR é seu primeiro romance. ( ddornellas13@gmail.com

 

 

afernandoab 300x300 - Fernando Andrade entrevista Deborah DornellasFERNANDO ANDRADE, 50 anos, é jornalista, poeta, e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemoemetria , e Enclave ( poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018 o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie pela Editora Penalux.
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This Article Has 1 Comment
  1. Regina Reply

    Deborah , a sua viagem à Angola foi importante para o pano de fundo da história de Vitalina?

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