FERNANDO ANDRADE – Seus contos tem uma sinteticidade e concisão impressionantes. Como foi escrever nesta forma de “contenção” entre trezentas a mil palavras? E o que difere a publicação no site (pensando em leitura) de um livro físico? Você trabalhou estilisticamente os contos para publicação em livro?
SANTIAGO SANTOS – Acho que essa “contenção” a que você se refere foi algo que desenvolvi com o tempo no projeto Flash Fiction (flashfiction.com.br). A princípio os contos eram mais recortes que narrativas inteiras, como acabariam se tornando, em sua maioria (hoje, passam de 400 publicações). Quanto mais intimidade eu criava com o miniconto, mais eu me tocava que havia muita coisa que não precisava estar ali, que não agregava nada à história, que até pesava sem necessidade. De certa maneira, isso é verdade pra muita coisa, mesmo pros romances mais caudalosos, mas creio que a exatidão e a limpeza sejam aspectos cruciais da ficção breve. Nomes de personagens, de cidades, tempo histórico, descrição física, descrição da movimentação, da geografia interna da narrativa; muitas vezes isso pode ser omitido sem perda alguma; o Dalton Trevisan é mestre nisso. Acrescentando a isso a neura do mínimo na revisão, algo que sempre me remete à metáfora de Graciliano com as lavadeiras de Alagoas, e que considero uma regra essencial da escrita, fui moldando esse estilo econômico. Quando fiz a seleção dos 50 contos pro Algazarra, ainda fiz uma nova revisão, dando mais aparadas e lapidadas. Pra ficar o mínimo possível e potencializar o efeito.
Quanto às diferenças entre a leitura no computador/celular/tablet e livro, acredito que a única coisa que difere é o estado mental do leitor/leitora. Hoje em dia, é raro que alguém pare apenas pra ler literatura logado na internet. É uma avalanche de coisas, entre dezenas de notificações, e o conto publicado no site ou na rede ou na caixa de entrada como newsletter é apenas mais uma dessas coisas, é uma leitura mais imediata, sem o costumeiro espaço de atenção e foco que reservamos a um livro físico ou a um e-book num e-reader, que por natureza privilegia mais essa imersão que um tablet, por exemplo, onde a fragmentação costuma imperar. Outra coisa que me preocupou nessa transição pro livro foi algo pro qual nunca me atentei no site: como sai um por semana, não me preocupo com certas repetições, ecos, semelhanças temáticas. Mas quando montei o livro, fui realocando os contos de acordo com suas características pra que uma leitura feita na sequência pretendida não ficasse chata, maçante.
FERNANDO ANDRADE– “Algazarra” é um ótimo título para os diversos níveis de estilos/gêneros que você coloca no livro. Esta pluralidade de concepções sobre literatura, como é desenvolver isto num formato como o conto?
SANTIAGO SANTOS – A vantagem do miniconto é exatamente essa, a de possibilitar tanta experimentação. Um romance, ainda que possa ser plural em suas formas narrativas e temáticas, via de regra opta por uma linha-guia mais consistente pra não virar um arremedo experimental demais e até chato. Já em um miniconto (mais que o conto, que pode exigir uma estrutura mais sólida que a maleabilidade da brevidade permite), é perfeitamente viável fazer um experimento em segunda pessoa claustrofóbico como o “Percepção extra-sensorial inerciática” e na sequência traçar uma narrativa cotidiana e simples como “Tia Jerusa”. Não são necessários os possíveis anos de dedicação que um romance experimental exigiria, e portanto essa produção é viável. Também acho que nem teria o tesão de fazer um romance inteiro na pegada claustrofóbica do Percepção, pra ficar nesse exemplo. Considero o Flash Fiction um laboratório, e a pluralidade na produção reflete a pluralidade que prezo como leitor, então não vejo como isso poderia ser diferente. O Algazarra sintetiza isso, ainda que no fim das contas eu não tenha trazido pro livro alguns experimentos mais radicais, que ficaram no site. Fiz isso por sentir que apesar de interessantes na forma, não ecoavam tanto no campo afetivo da leitura quanto os que foram pro livro; o recorte foi puramente guiado por esse meu instinto daquilo que realmente me toca enquanto leitor, que ecoa.
FERNANDO ANDRADE – O cinema tem esta questão da demarcação de gêneros mas possui também a mistura de linguagens, um hibridismo mexendo no tempo, cronologia, em personagens complexos com a dualidade do bem e do mal. Você acha que futuro da literatura será a quebra do paradigma da obra conceitual sobre determinado viés apenas (incluindo político, sociológico, filosófico)?
SANTIAGO SANTOS – Creio que esse hibridismo ocorra também na literatura. Como definir a produção de um Manoel Carlos Karam, pra ficar num exemplo, sem recorrer a esses hibridismos? Claro que quanto mais arriscado, mais fora da caixinha, mais difícil ou arriscado se torna. E é comum pensar que esses experimentos não sejam a linha de frente do mercado, não sejam a marca do que vende, do que faz girar a economia literária ou cinematográfica (sempre há exceções; penso nos filmes de Paul Thomas Anderson, que são obras de arte arriscadas mas que sempre possuem o apelo hollywoodiano e, pelo jeito, público pra que continuem sendo feitos). Essas produções são via de regra a paixão de aficionados em diversos nichos, que prezam pelo diferente, pelo que se erige sobre uma autenticidade que muitas vezes não é facilmente mastigada.
Não sei se esse campo da experimentação é o futuro da literatura. Com certeza as boas obras continuarão ecoando nesses mesmos nichos de interesse. Tampouco acho que a quebra de um paradigma específico ou outro seja a marca do futuro da nossa arte (até porque a ficção científica tem quebrado muitos paradigmas há um bom tempo). Sinto que com a redução do tempo de leitura, a fragmentação de atenção e a competição acirrada e até covarde de outras mídias (considere uma criança ou jovem disputando com seu livro os desenhos e filmes da Netflix, os vídeo-games em consoles, computadores ou celulares e tablets, os canais de YouTube), é natural que a literatura se adapte à linguagem de seu tempo e se torne mais imediatista. Me parece que pra não ficar cada vez mais afunilada e restrita, a literatura precise se debruçar em cima de obras como Pssica, do Edyr Augusto, prum público adulto, que tem uma qualidade literária excepcional e é ao mesmo tempo veloz, imediata, seca, violenta e cinematográfica. Tem os elementos que a podem tornar facilmente hypeada, e funcionar como porta de entrada e manutenção da literatura que dialoga com o presente.
Talvez o verdadeiro conflito da literatura do futuro seja torná-la relevante pras gerações que vêm. Na academia e nos nichos de interesse ela sempre será prezada. Mas e pro grande público? Não acho que os best sellers por si sejam algo ruim, ainda que constantemente atacados. Mas podemos aumentar a qualidade média do que se vende muito, e incluir nessas listas mais autores brasileiros? Acho que esse é o desafio. Mais no acesso que na forma. Formar público. Passa pela nossa educação básica, pelo investimento em educação, agora estancado por uma PEC apocalíptica. Quantos autores no Brasil conseguem levar essa profissão como fonte primária (e confortável) de renda, pra que possam de fato se dedicar a isso? Às vezes sinto que as discussões sobre o futuro da literatura tendem a ficar muito abstratas e teóricas e passam ao largo dessa enxurrada de transformações que precisam acontecer no agora. Enfim, é uma discussão ampla, mas fico com essas provocações.
FERNANDO ANDRADE – Como você descreveria o humor dentro de uma tradição literária; poderíamos pensá-lo como um gênero como as comédias cinematográficas ou um efeito subversivo político falando da condição humana? E como você situaria o humor dentro dos seus contos?
SANTIAGO SANTOS – Acredito que o humor seja algo que integre a afete todos os gêneros, em maior ou menor grau. Um livro como Zazie no Metrô, do Queneau, tem um humor recorrente que se torna uma das colunas a erguer o romance. Em Meridiano de Sangue, o McCarthy se utiliza da ironia mais ácida pra dar vida ao Juiz em um mundo desprovido do humor mais banalizado. Vejo ele contaminando tudo.
Quanto à possibilidade de efeitos subversivos, o humor bem feito (porque o mal feito é muito comum e tem um efeito imbecilizante e mantenedor do status quo que dá asco) pode ser uma grande arma de catarse. Penso em esquetes do Monty Python, em certas passagens e notas de rodapé do romance O Terceiro Tira, de Flann O’Brien e nas tiras do André Dahmer como constatações profundas de uma realidade a que nos acostumamos mas que perdemos a capacidade de ver com a devida crítica. Qualquer tirinha dos Anos 10 do Dahmer é um soco no olho, bem como as tiras políticas que a Laerte vem fazendo há tempos. Mas também penso que o humor têm suas limitações como incentivador de transformação. O David Foster Wallace falava do vazio que a ironia constante cria, e vendo recentemente o stand-up Nanette, da Hannah Gadsby, fui transformado, veja só, por uma humorista que me apontou de maneira irrecusável que o humor não pode salvar tudo, que a piada nem sempre salva.
Quanto ao humor nos meus contos, creio que venham dessa forma desbaratada que ditam as mesmas diferenças temáticas e formais na minha produção. Vira e mexe aparecem, e muitas vezes dominam completamente uma narrativa. No Algazarra, o “Da culpa num assassinato não premeditado” é um bom exemplo de um calcado no humor. Acho que o melhor uso do humor é mesmo pra apontar as ironias e as inconsistências da vida, funcionando como uma espécie de fiscal do ridículo, e se faço isso do jeito certo, espero que esse seja o efeito: um riso meio desesperado.
Fernando Andrade é jornalista, poeta e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemometria , e Enclave ( poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018, o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie pela Editora Penalux.
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