Fernando Andrade entrevista o escritor Fernando Ramos

Por Fernando Andrade

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FERNANDO ANDRADE O mundo, fala, solta sua linguagem. Talvez a arte seja uma forma de reflexar este veio especular do mundo. A pergunta que te faço é como através do verbo partindo do primevo e prosseguindo pelos verbos, seguintes, como podemos através da arte e talvez seu livro medie isso, controlar as pulsões do mundo um tanto egóicas pela reflexão da e na arte? 

FERNANDO RAMOS – Eu acredito que o verbo escrito com intento de lapidar arte possa ser uma forma mais elevada de comunicação entre as pessoas. E acredito que a palavra possa ser uma tentativa de interferência na realidade objetiva. A meu ver, o verbo deve ir além da tarefa de refletir a realidade visível, inda que isso se torne um tanto quixotesco. Inda que seja apenas mais uma garrafa lançada ao mar. Em doses maiores ou menores, essa pretensão é necessária para conceder ao verbo algum poder transformador. Não estou a falar apenas de grandes revoluções, mas também (e principalmente) de pequenas revoluções pessoais, interiores. Comungo da mesma visão de Paul Klee, que afirmou: “A arte não reproduz o visível; ela torna visível.” Se a arte torna visível, então podemos dizer que o verbo, na sua maior funcionalidade, é um par de óculos para enxergar o mundo. Todas as nossas ações são apenas reações diante da forma como enxergamos o mundo. Portanto, fica claro que a mera troca de lentes, assim como no cinema, pode alterar radicalmente o modo como vemos a vida e como nos comportamos diante dela. Conheci pessoas que saíram da fossa lendo Nietzsche. E outras que entraram nela lendo Schopenhauer. Existe uma lente apropriada para fotografar a profundidade. E outra para fotografar a superfície. A vaidade é inerente à condição humana e, na medida certa, pode e deve servir como um motor criativo. A arte seria uma forma de converter vaidade em legado. Um modo de distinguir a origem de nossas pulsões dos seus resultados, os quais passam a redimir as motivações originárias. Pois a vaidade que serve de motor a uma causa maior do que ela mesma não pode ser considerada ruim. Acho que a imagem de um espelho pode sim retratar a arte; mas seria um espelho bipartido: uma metade mostra o que somos ou o que vemos, enquanto a outra mostra o que poderíamos ser ou ver. O verbo, quando encantado, nos expõe essa encruzilhada e nos restaura o livre arbítrio. Essa reflexão bipartida nos devolve a visão multifacetada do visível e do invisível. O invisível está sempre presente, pois representa as possibilidades do futuro. O futuro é invisível, mas pode ser intuído e manejado. Grandes livros de ficção, poesia e filosofia são sempre flechas atiradas ao futuro, inda que busquem retratar ou discutir o presente ou o passado. Quando um documentarista liga a câmera, automaticamente, a presença da mesma altera o comportamento do entorno. Quando observamos a realidade, já estamos influindo nela, coisa que a física quântica deixou provado. E se perpetuamos esse olhar, essa observação por meio da arte, potencializamos a intensidade dessa influência de uma forma que escapa ao controle e ao tempo do artista. Quando observamos a História no plano microscópico, por vezes, pode ser difícil enxergar nitidamente o poder transformador da arte. Mas basta que afastemos a visão para enxergarmos com clareza como ela redefine a cultura e a sociedade num jogo contínuo e entrecruzado. Não à toa, é sempre vítima de censuras totalitárias, pois subversiva por natureza. O verbo ainda é a expressão primeira e gutural da arte, conquanto os próprios idiomas são uma criação artística dinâmica e coletiva. E a arte – e, com ela, o verbo – é o idioma mais elevado em nossa civilização. É por meio desse idioma que desaprendemos as versões rasteiras, mesquinhas e egocêntricas do verbo, refazemos nossas trajetórias e nos encontramos com o ilustre ser desconhecido que nos aguarda na esquina do futuro. O verbo encantado faz do ego meio, ao invés de fim. É na transferência do individual ao coletivo que nos despimos de toda a nossa egonia. O narcisismo só encontra salvação bebendo o leite denso dos seios da arte.

 

FERNANDO ANDRADE – Como foi pensar cada cena que você lapida? Fiquei muito curioso como ia surgindo temas, citações, e dentro do escopo dos capítulos que são os mm(s) da sua prosa. Como o desenvolvimento do livro foi pegando, uma unidade, uma coesão?  

FERNANDO RAMOS – O processo de criação de “Egonia – 9mm de Prosa” foi algo muito fora da curva. A força e o frescor desse romance derivam desse processo extravagante. Por volta dos meus 14 anos, descobri por acaso essa voz literária do Dioniso Bento – que inda não tinha nome – mas já se apresentava como uma bifurcação íntima, próxima, mas não idêntica ao meu ser: um semi-heterônimo. Durante 20 anos, eu colecionei os impulsos literários dessa voz específica. Nunca exerci qualquer controle racional sobre esse processo. Simplesmente, em certos momentos, a voz de Dioniso Bento brotava por dentro, num jogo de palavras intuitivo e magnético que não buscava o sentido, mas acabava por trombar de frente com ele. Nunca premeditei o tema, a forma, o som ou ritmo de nenhum dos fragmentos desse romance. Eu apenas desenvolvi a escrita automática que desvela o subconsciente, nos moldes em que foram criados os roteiros surrealistas de “O Cão Andaluz” e “A Idade do Ouro” por Buñuel e Dalí. Da mesma forma que Jackson Pollock pintava. É assim que eu escrevi esse livro: sem pensar. Foi muito mais uma questão de vazão, em contraponto à mediação intelectual. Na verdade, quando não pensamos ao criar, estamos deixando que o nosso subconsciente acordado pense pelo nosso consciente dormente. É claro, não podemos evitar certo estreitamento das vias do subconsciente, uma vez que ainda estaremos presos às palavras e conceitos que conhecemos e aos caminhos sonoros e semânticos que a nossa experiência pessoal nos faz “escolher” – e coloco entre aspas porque nesse jogo não se escolhe, mas se vomita. A linguagem tem limitações maiores do que o subconsciente. Mesmo assim, durante 20 anos, autor, personagem e processo amadurecem em conjunto. O jogo fica mais afiado e rápido, as associações magnéticas ficam mais ousadas. As rimas, mais distantes e menos previsíveis. O interessante nesse processo é que o subconsciente capta melhor as bordas da realidade objetiva. E é justamente nessas bordas, na fronteira entre o visível e o invisível, que se encontra o maior banquete para a arte devorar. O subconsciente é mais livre, mais rápido, mais forte e mais profundo do que o consciente. Portanto, o artista que é capaz de ceder o seu controle ao descontrole, e assim encontrar fendas de acesso ao subconsciente, é aquele que conseguirá desenvolver da forma mais plena o seu potencial. Quando um avião cai, muitas vezes, apenas a caixa preta vai resguardar os segredos dessa queda. Todo ser humano é um avião em queda. Escrever dessa forma equivale a acessar o conteúdo da caixa preta ainda durante o voo; antecipar as experiências ainda não completamente vividas, desenhando as reticências do futuro. O subconsciente é clarividente, pois é a morada do destino – ou da predisposição, caso prefiram. Alguns chamariam esse método de trapaça; eu chamo de pulo do gato, o enorme salto que separa a mera cópia fiel da nova realidade repensada pelo martelo do escultor. Como dizia Maiakovski: “Arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo.” Mas então, chega a parte mais difícil: como dar unidade e coesão a um enorme baú de fragmentos cujo único denominador comum era que tinham nascido de um mesmo tipo de impulso, de uma mesma voz literária? Logo de início, eu excluí a solução mais óbvia: a cronológica. Queria definir compartimentos temáticos, esferas textuais. Uma narrativa essencialmente psicológica não precisa se escorar nos limites-estanques do tempo exterior. Assim, sendo o personagem-autor roteirista de cinema, achei coerente que cada capítulo tivesse o nome de uma obra-prima da sétima arte. Tal capítulo não falaria sobre o filme diretamente, mas sobre os temas desse filme, de acordo com a experiência do personagem. Então, o romance disfarça o seu processo: dá a entender que foi escrito nessa ordem em que foi publicado. Na verdade, levei alguns anos categorizando milhares de fragmentos em 9 blocos. Muitos fragmentos foram excluídos e todos que permaneceram foram exaustivamente revisados. Mas sempre procurei alterar apenas o mínimo necessário em tais fragmentos, para preservar ao máximo a essência original do impulso cego. Por sua vez, a ordem interna dos fragmentos dentro dos capítulos obedece a uma lógica própria: toda ilha textual possui um gancho de ligação com o que veio antes e o que vem depois. Pode ser a continuidade do mesmo subtema, a centralidade de uma mesma palavra, a reiteração de uma imagem, o humor ou a atmosfera do texto. Essa lógica é mantida mesmo entre o último fragmento de um capítulo e o primeiro do próximo. A estrutura dos 9 mm serve para harmonizar as diferentes perspectivas do livro de forma coesa. E para metaforizar a escrita como pistola contra o mundo e si mesmo, uma forma de auto aniquilação e reinvenção. Assim, sente-se melhor e de forma ordenada o aprofundamento vertiginoso no tema de cada capítulo, onde Dioniso Bento deixa como legado tudo o que foi capaz de sentir e entender sobre tal assunto. Mas esses 9 blocos temáticos trazem quase que apenas narrativas interiores, psicológicas, que raramente revelam de forma direta ou explícita a rotina ou exterioridade do personagem-autor. Para reforçar o mínimo delineamento da narrativa objetiva, escolhi fazer duas intervenções externas ao livro escrito por Dioniso Bento: o prefácio escrito por ele mesmo, no qual alega a minha autoria da obra e resume a estória de sua vida; e o prólogo escrito pelo Fernando Ramos propriamente dito, no qual alego a autoria de Dioniso Bento e narro como se deu o nosso encontro. Assim, cria-se um labirinto metalinguístico sem saída, trancafiando para sempre o leitor no quarto escuro que encerra a origem das palavras escritas. Portanto, nas fronteiras inicial e final do romance existem essas duas intervenções externas que revelam, primeiro, o corrimão principal da estória do personagem e, ao fim, a forma como eu, ele e sua obra nos encontramos. E há também uma surpresa adicional no fim do fim, a qual não quero comentar aqui para não estragar a experiência de futuros leitores. Assim, estando o leitor munido das informações básicas trazidas nessas extremidades, diante do conhecimento delas, direciona-se um pouco o seu olhar, facilitando a construção do quebra-cabeça narrativo extraído das entrelinhas e subtextos de todos os fragmentos. Prefácio e prólogo funcionam para delinear os marcos principais da narrativa objetiva; mas tudo que reside entre um marco e outro fica por conta do leitor. Por outro lado, caso o mesmo opte por ler o romance pulando o prefácio, terá outra oportunidade em mãos: a de reconstruir de forma mais solitária esse quebra-cabeça. Sem o prefácio, o caminho é mais árduo e misterioso. Com ele o leitor já sabe de início qual será o fim do personagem-autor: perde-se um pouco do suspense, mas a leitura ganha um pouco mais de páthos, uma vez que tudo quanto lido adquire o relevo emocional do desfecho ao qual sabidamente se desemboca. “Egonia” é um romance interativo, que exige a participação da imaginação, intuição e interpretação do leitor nessa construção conjunta. Seja por um caminho ou por outro, as bordas desse livro oferecem chaves de interpretação do romance dentro do romance, consolidando por fora a estrutura lógica que se manteve por dentro. A parte mais trabalhosa foi essa categorização, ordenação, revisão e estruturação formal e conceitual da obra. A escrita dos fragmentos em si foi um laboratório de criação literária experimental, desenvolvido monasticamente em 20 anos. Mas esse processo foi sempre lúdico, instigante, surpreendente. Custou-me muitas lágrimas, mas nenhuma gota de suor. No entanto, o suor correu em bicas no momento de fazer esse avião de caóticas trajetórias pousar intacto em terra firme. Por sorte, Eduardo Lacerda e a sua heroica Editora Patuá estavam no comando da torre de controle na hora do pouso.

 

FERNANDO ANDRADE –  Sua prosa apesar de na página não ter uma metrificação rígida, você solta uma poética originalíssima com rimas e sons bem interessantes. Havia uma preocupação sua em manter uma musicalidade dentro da semântica do texto proposto por você?

FERNANDO RAMOS – Exatamente. Por mais que eu não tenha exercido o controle racional desse processo de criação, a minha visão autoral reside na busca da conciliação simultânea da fanopeia, logopeia e melopeia dentro do mesmo fragmento. Em alguns casos, uma das três predominou sobre as demais. Todavia, creio que meus maiores acertos estilísticos ocorram quando consigo propiciar a convivência pacífica entre elas, apoiando um mesmo texto sobre o tripé da imagem, da ideia e do som. A maioria dos autores subjugam a imagem e o som em favor da ideia ou subjugam o som e a ideia em favor da imagem ou subjugam a ideia e a imagem em favor do som. Da mesma forma, fazem preponderar o abstrato sobre o concreto ou o concreto sobre o abstrato. E o motivo para isso é óbvio: é mais fácil e seguro. Mas as escritas que mais me deslumbram são aquelas que flutuam livremente sobre todas essas zonas cinzentas, incorporando simultaneamente as três condicionantes aos rumos da escrita, bem como oscilando, sutil ou bruscamente, entre o abstrato e o concreto; entre a forma e o conteúdo. Com o advento da fotografia, as artes plásticas tiveram seus rumos radicalmente alterados. Da mesma forma, com o advento do cinema, não pode mais permanecer igual a literatura. E para onde poderia a literatura escapar da redundante intersecção da sua narrativa objetiva com a narrativa objetiva do cinema? Ora, a resposta é simples: o cinema é amparado no suporte da visibilidade. Resta intacto aos escritores e poetas o continente das narrativas invisíveis, dos pensamentos mudos, dos sentimentos imaginados, das sinestesias lisérgicas, das abstrações caleidoscópicas da alma; da corda bamba entre o sentido e o não sentido. “Egonia” caminha por essas bandas. Mas quero comentar outras coisas sobre essa pergunta. Há cerca de 15 anos eu exerço seriamente uma atividade que me dá imenso prazer, que é o trabalho de compositor e letrista. Acostumei-me a nunca dissociar o ritmo, a harmonia e a melodia da feitura das palavras. Toda palavra, por si só, nasce com som, ritmo e métrica. E toda palavra possui uma cor ou energia particular, a qual exerce um jogo magnético de atração e repulsa com as demais palavras. Imagine que cada palavra de nosso idioma seja um corpo celeste distinto. Escrever seria rearranjar tais corpos celestes criando um novo universo ao redor. Você pode subverter as regras universais, mas então, terá de criar as próprias regras. Ao escrever os fragmentos desse romance, por mais que tal escrita venha de uma vazão automática da pulsão irrefreável de escrever uma voz, sempre existe algum corrimão principal, mesmo não sendo premeditado friamente. Alguns textos brotaram de um ritmo, quando a síncope musical dirige a cena. Outros, de um som, quando rimas e aliterações acenam os próximos passos. Outros brotaram da atmosfera de uma música que eu escutava enquanto escrevia. Outros, das impressões nebulosas de um sentimento estranho. Outros, de um aforismo, quando a logopeia pode assumir as rédeas da diligência. Outros, das imagens oníricas de uma saudade inominada. Outros, dos diversos matizes de uma pintura. Em quaisquer dos casos, esses textos estarão limitados aos cercados da minha ideologia e visão de mundo, que se encontram bem à esquerda do espectro político. Isso, nem o meu subconsciente consegue negar. Já o humor ácido, a predisposição para o sacrílego e a enorme simpatia pela provocação visceral da burguesia apolínea são ingredientes indissociáveis da minha escrita. Para concluir essa resposta, quero dizer que a minha relação criadora com o cinema, a música e a literatura propiciaram essa busca pelo olhar tríplice da imagem, do som e da ideia. A minha intenção é fazer com que o leitor sinta-se nocauteado por todos os lados ao mesmo tempo, perdendo os sentidos objetivos e, então: cego, surdo e mudo, passe a comungar de novos sentidos; mais adequados para se caminhar nas praias do subconsciente e, assim, povoar o seu próprio universo. 

 

FERNANDO ANDRADE –  Me fale um pouco da escrita intertextual, e como você se apodera dela para hibridizar linguagens da literatura (ficção) e do cinema. Você já leu Deleuze? Principalmente os livros sobre cinema?

FERNANDO RAMOS – Infelizmente, ainda não li nenhuma obra de Deleuze. Mas espero sanar essa lacuna em breve. Eu não me considero um intelectual, mas apenas um artista. Estou muito, mas muito distante mesmo de quaisquer pretensões eruditas. O meu maior campo de pesquisa é o cinema, mas, mesmo nele, ainda tenho muitos territórios desconhecidos para mapear. Vou tentar responder essa pergunta de forma mais sintética e direta. Eu creio que a evolução de cada uma das artes impacta diretamente nas demais e em si mesma. A minha escrita gosta de incorporar referências artísticas diversas, tanto da literatura quanto do cinema, da música, do teatro, da fotografia, da pintura. Assim como Lars Von Trier gosta de separar as porções de alguns de seus filmes em capítulos e por vezes incorporar o próprio texto sobre o quadro, assumindo a inspiração literária; nesse romance, o cinema serviu de inspiração para a sua forma e conteúdo. Eu gosto muito do modo como o cineasta francês Robert Bresson filosofou e teorizou a sua busca pelo cinema puro no livro “Notas sobre o Cinematógrafo”. Ele dependeu da literatura para respaldar a difusão de sua proposta estética para a sétima arte. Quando Tarkovski disse que fazer um filme é esculpir o tempo, fez uma ode para a intertextualidade. Outras fontes de inspirações que fundem o cinema e a literatura são os livros do também roteirista Jean-Claude Carrière, especialmente “A Linguagem Secreta do Cinema” e “Fragilidade”. Quando Giotto pintava seus quadros com narrativas sequenciais, ali foi semeada a primeira semente das histórias em quadrinhos. Até mesmo a televisão, que não é arte, alterou os formatos de exibição cinematográfica, acelerando o avanço científico na criação de novas lentes e câmeras; tudo para gerar um diferencial exclusivo diante da concorrência desleal de um novo meio. Em “Egonia” existe um capítulo dedicado exclusivamente ao cinema, onde insiro ensaios dentro da estrutura do romance, o que se justifica pela profissão de seu personagem-autor. Não sei exatamente qual seria a razão, mas sou fortemente atraído pela intertextualidade, tanto quanto sou atraído pela metalinguagem. Talvez por ser uma forma de me inserir dentro do diálogo universal entre as obras de arte. A intertextualidade seria uma maneira de deixar migalhas de pão indicando o caminho de volta. Para quem se interessar poder percorrer a mesma trilha usada por um autor para chegar aonde chegou. Alguns apontam o maior hermetismo dessa proposta, mas creio que seja uma demonstração de generosidade do intelecto, que abre as fontes em que bebeu. Nesse romance, desfrutei do deleite de reescrever passagens bíblicas ou mesmo de fazer galhofa dos grandes, de Shakespeare a Joyce, de Dante a Burroughs. Pois trata-se também de uma forma de retirar os ícones dos pedestais em que foram colocados. Ninguém deve estar acima disso. De resto, todo e qualquer hibridismo é do meu interesse, pois é um modo de contornar rótulos e convenções, criando novas formas: estranhas e belas criaturas selvagens, que não cabem dentro de um único compartimento. “Egonia” poderia também se tornar um filme, uma peça de teatro, um disco e uma série de pinturas. Essas alusões, transposições e hibridismos trazem sempre processos desafiadores e arriscados, mas onde há risco e perigo, é justamente o lugar onde me sinto em casa. Antes errar tentando a acertar desistindo de tentar. Se eu gostasse de seguir ao pé da letra receitas consagradas, seria confeiteiro, ao invés de artista. E o artista que só se repete, sem nunca ousar sair da zona de conforto, torna-se moribundo e redundante, algo equivalente a um papagaio com manias de grandeza.

 

Fernando Andrade é jornalista, poeta e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemometria, e Enclave  (poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018 o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie pela Editora Penalux.

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