FERNANDO ANDRADE – Você faz uma forma de mapeamento do corpo porém sem sua concreção física, adotando uma visão do corpo ao entorno que muitas vezes não é amistosa. Para isso sua linguagem precisa ou deve alcançar uma relação tênue com a narrativa e a descrição. Qual e quantos espaços com silêncios você teve que deixar para criar este belo efeito de apenas sugestionar, o poema?
CASÉ LONTRA MARQUES – O corpo é uma presença quase inextirpável no que venho escrevendo. E ao dizer corpo estou pensando numa amplidão de possibilidades, físicas mas também pulsionais. Mais explicitamente: há o corpo que pesa, que faz sombra; e, adensando isso, há o corpo que não se submete a medidas — um corpo além (ou aquém) das bordas palpáveis, perpassado por estímulos indelimitáveis. Que anda, que se desloca continuamente. E que — tocado pelo espanto — se deslumbra, contemplativo. O que talvez faça pensar (corretamente, creio) na relação com a narrativa e a descrição. Cuja manifestação no texto tem a ver ainda com um gosto às vezes mais, às vezes menos demarcado pela impureza… Eu certamente não saberia nomear nem calcular o silêncio que integra minha prática poética. Contudo, existe aí, nesse ponto da questão, algo fulcral: o lapso como elemento estruturante. Assim como a fresta, o interstício. A voltagem do intervalo.
FERNANDO ANDRADE – A linguagem que você usa nunca atravessa o próprio território do que você propõe a falar, uma semântica do corpo, exilado? A escolha das palavras parece que obedece ao rigor métrico de controle do que falar emitir omitir (silêncio). Para mim lendo seu livro me afetou um efeito de plasticidade como se eu tivesse vendo um quadro cuja tinta não fosse totalmente matizada em formas. Fale um pouco disso?
CASÉ LONTRA MARQUES – Desde o começo (no tempo dos primeiros rascunhos), acredito que escrevo com os olhos. Como se desenhasse. Ainda que eu procure convocar para o texto outras dimensões sensoriais: as demais já catalogadas, mas também — ou sobretudo — aquelas inapreensíveis. Que serão (tomara) inauguradas pelo próprio fluxo frasal. No entanto, desejo que os traços rabiscados linguisticamente sejam, de maneira propositiva, difusos. Até mesmo informes. Para não fechar nem enfeixar a pulsação — intratável — que há na palavra, bem como na vida: pois ambas transbordam. E se metamorfoseiam, corroendo todo tipo de contorno.
FERNANDO ANDRADE – Senti uma certa alusão à tipos de aforismos, exercícios filosóficos usando a máxima capacidade da linguagem para o poema implodir (explosão para dentro) com intensa força. Você pensou nesta condição reflexiva sobre seus poemas?
CASÉ LONTRA MARQUES – Sim, penso constantemente a respeito disso, da pulsão meditativa que nutre, de modos distintos, o que escrevo. Algo que fui levado a perceber após o retorno de algumas leituras, que destacaram tal detalhe em meus textos — isso ainda no primeiro livro que publiquei, anos atrás… A fala aforismática me seduz enormemente. E também, claro, me perturba, como uma luz que fere, permitindo, no entanto, a irrupção do inesperado: por uma greta, uma frincha que seja. De modo insubmisso; logo, implosivo.
FERNANDO ANDRADE – Que autor você acha que o seu livro teria alguma filiação estética, e porquê?
CASÉ LONTRA MARQUES – Acredito que o que tenho escrito se aproxima daquelas propostas poéticas mais propensas ao inacabado, uma vez que os textos que me ocorrem recusam, em diferentes graus, uma conclusão unívoca. Tenho realmente — confesso — uma dificuldade tremenda com a definição: quero o que escapa sempre. Instável, trepidante. Até a exatidão que busco guarda contato com a imprecisão. Por isso me vejo perto de percursos (e processos) linguísticos marcados por uma condensação metafórica de alguma maneira problemática, já que faz o dizer deslizar — o que se alia, não raro, a uma espessura sonora obsessiva, que chama para zonas semânticas onde o repertório de significação cimentado culturalmente é impelido a se abrir. Ou: a se poluir… Uma linhagem tateante, se linhagem for. Tateante e acrobática.
Fernando Andrade é jornalista, poeta e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemometria , e Enclave ( poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018, o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie pela Editora Penalux..
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