FERNANDO ANDRADE – Seu livro tem uma forma muito interessante de olhar e narrar a rotina por uma gama riquíssima de temas e olhares, o espectro de linhas de histórias e estilos que percorrem teu livro é impressionante. Como foi montá-lo desta forma?
ALEX XAVIER – Há muito tempo, eu me interesso por ações cotidianas e tento lançar um olhar diferente sobre elas. No início, não sabia direito que rumo tomar, nem entendia aquilo como um livro. Apenas juntei, da minha produção de anos, contos que tratavam de problemas do dia-a-dia. Mas não havia uma conexão muito forte entre eles. Era apenas um amontoado de histórias urbanas. Com o tempo, foquei em como nos mantemos presos à rotina não importa os absurdos que encontramos pela frente. Todos os dias, a gente se depara com cenas que deveriam nos revoltar, como moradores de rua passando fome e frio, alguém sofrendo algum tipo de preconceito, outros que se apoiam a uma tradição de privilégios para privar os demais dos seus direitos, e mesmo assim quase nunca temos tempo ou disposição para tomar alguma atitude. Brinco que, no dia seguinte ao apocalipse, a maioria de nós ainda vai se preocupar em como chegar ao trabalho no horário. Com isso em mente, passei a separar os contos que mostrassem os personagens presos a uma rotina mesmo em contextos extraordinários. Foi um processo demorado. Mostrei as histórias a muita gente, principalmente aos colegas do coletivo literário Discórdia, que me chamaram a atenção para vários detalhes e pontos de vista que não percebia. Lembro que a primeira versão do livro tinha 21 contos. Depois de repensar o tema central, tirei onze deles – que não tinham nada a ver ou repetiam ideias ou, simplesmente, não eram tão bons – e adicionei aos poucos dez novos que abordam os mais diversos temas. Foi necessário me desapegar de muitas histórias, mas valeu a pena. Acho que o conjunto faz sentido agora.
FERNANDO ANDRADE – A rotina não poderia ser quase um story board de uma narração-ficção, pois ela enquadra alguns bons arquétipos de um bom conto ou enredo. Digo isso pois ela tem um formato específico com linhas temporais fixas, ação em transcurso, conflito e etc. O que você acha?
ALEX XAVIER – Como defendia o Ricardo Piglia – e, em oficinas, reforça-se bastante isso -, um conto sempre apresenta duas histórias, uma mais evidente e outra, oculta. Ao tratar da rotina, destaquei pedaços das vidas dos protagonistas que, mesmo em um cenário surreal, preservam uma certa linearidade. Mas existem muitas boas histórias escondidas no nosso dia-a-dia. Tudo depende da forma como você conta. Ao mesmo tempo que muitos dos conflitos não têm nada de extraordinário, procurei criar narradores pouco usuais às narrativas. São três contos na segunda pessoa do singular, por exemplo. Um outro começa na primeira pessoa do plural, pois segue o ponto de vista de fungos, que não são animais nem vegetais e só funcionam coletivamente, sem a nossa ideia de indivíduo. Também dei voz a uma mosca, uma inteligência artificial e um coração transplantado. Também tentei trabalhar a percepção de tempo de cada história. Um dos contos fala sobre memórias afetivas (e nossa dependência delas) e traz pequenos flashbacks jogados de forma desorganizada. Outro se passa durante uma apresentação teatral, dividido em atos. A cada história, eu me perguntava coisas como quanto tempo uma mosca de apartamento vive, quanto tempo uma pizza leva para mofar fora da geladeira, quanto tempo uma nave leva entre a Terra e Marte… Quando se fala em rotina, a marcação de tempo é importante também.
FERNANDO ANDRADE – Há uma linha em seus contos onde a cultura de massa predomina, não digo que seu livro seja POP, mas há nos contos uma liberdade criativa de não engessar nenhum tipo de informação nem muito menos critérios para escolher “caminhos”. A variedade de temas e focos acho que me diz que parece que vc tem um interesse forte pela industria cultural?
ALEX XAVIER – Na verdade, procurei me abrir a todas as minhas influências, o que inclui muito de cultura pop. Eu queria contar histórias urbanas, contemporâneas e cotidianas, mas dentro de um contexto espetacular. Então, escolhi roubar elementos de histórias de gênero, que serviriam como um empurrão para os protagonistas saírem do seus mundinhos e também para ajudar o leitor a enxergar detalhes ordinários por um ângulo diferente. Todo mundo já deixou comida estragar no forno, discutiu com alguém nas redes sociais, ficou de saco cheio em uma reunião de condomínio, frustrou-se com um emprego chato, viveu uma desilusão amorosa. O suspense, a ficção científica, o horror, a fantasia, o policial, o erótico apenas me ajudaram a contar essas histórias triviais de uma forma incomum. Quando eu era moleque, lia muito romances detetivescos, de Agatha Christie e Conan Doyle, e de aventura, a exemplo de Julio Verne. Fui descobrindo Isaac Asimov, Philip K. Dick, Kafka. Claro, também Machado, Graciliano, Rubem Fonseca… Depois, Calvino, Cortázar… Mas também consumia muito quadrinho, videogame, televisão e, principalmente, cinema. Queria ser cineasta, cheguei a estudar filmes nos Estados Unidos e em Cuba, dirigi curtas como estudante, fui crítico de cinema por mais de uma década. Tudo isso acabou influenciando os contos que entraram no livro. De uma forma que eu vejo cada um deles ganhando vida além do livro, como filme, HQ, peça teatral, o que for. Sou aberto a deixar outros colocarem a minha obra em um liquidificador e adaptarem à maneira deles da mesma forma como me apropriei de muitas outras obras e fiz uma salada ao meu modo.
FERNANDO ANDRADE – Como foi trabalhar a linguagem nos contos? Há um aparelho linguístico sofisticado por trás de cada conto, usando as palavras, frases, da melhor forma à se contar uma história. Fale sobre isso?
ALEX XAVIER – Posso dizer que reescrevi tantas vezes cada um dos contos do livro que tenho receio de lê-lo de novo, porque sei que vou querer mudar vários detalhes. Em geral, tentei fugir da linguagem rebuscada e dar mais leveza à leitura. Tudo dependia da história, claro. Uma delas envolve um adolescente jogando videogame, por exemplo. Fui atrás de termos usados nesses games de tiro com missões compartilhadas. Inseri muito comando em inglês no meio, para o leitor se sentir no jogo. No conto narrado por uma inteligência artificial, procurei uma visão prática e bastante lógica. Mas queria também a sensação de que o robô aprendia por assimilação e tentei humanizá-lo conforme a interação dele com o antagonista progredia. Algo que aprimorei aos poucos foi a construção dos diálogos. Eu usava muito travessão e aspas. Limpei tudo. Também aboli determinações como “disse fulano” ou “explicou ciclano”. Gostei de causar um certo caos, jogando falas, de mais de um personagem, no meio de um parágrafo. De vez em quando não fica claro quem disse aquilo – nem mesmo se aquilo foi mesmo dito. Porque a vida é assim. Se eu te contar um papo que tive com uma outra pessoa há uma semana, com certeza, usarei palavras diferentes das que foram ditas e adicionarei alguns comentários meus como se fossem falas de alguém, deixarei muita coisa de fora, inverterei quem disse o quê. E tudo bem se houver confusão na cabeça do leitor.
FERNANDO ANDRADE – Me conte com foi este curso livre de preparação de escritores ( Clipe) da Casa das Rosas? E como o curso te ajudou na formatação do livro? Você fez alguma oficina com o Nelson de Oliveira? se sim, como foi?
ALEX XAVIER – Fiz o Clipe em 2016. Nesse ano, abriram uma segunda turma, pois tinham gostado muito do material enviado para a seleção e uma só não comportaria todo mundo. Eu fui para esse segundo grupo e realmente encontrei muita gente talentosa por lá. O curso era dividido em módulos de mais ou menos um mês (eram duas aulas semanais). Como professores, tivemos escritores como Ronaldo Bressane, Claudia Pucci Abrahão e Nelson de Oliveira. Abordamos contos, poesia, romance do século 20, entre outros temas. Pessoalmente, foi muito produtivo. Primeiro, porque, apesar de escrever contos, relutava em me ver como escritor. Pensava mais em escrever ficção para cinema e televisão. O início das aulas coincidiram com uma fase de muita criatividade. Ok, tinha muita ideia ruim no meio. Mas o Clipe ajudou a me organizar e comecei a produzir freneticamente, não só para os exercícios da oficina. Ter os textos lidos e analisados em classe, por mais dolorido que seja o processo, também é muito bom depois que se perde o medo de se expor ao ridículo. Por fim, o curso me colocou em contato com outros aspirantes a escritor que, além de amigos, acabaram compondo comigo o coletivo Discórdia e abrindo caminho para vários projetos juntos. Ainda fiz a oficina Escrevendo o Futuro, do Nelson de Oliveira, voltada à ficção científica. Foi outro grande chacoalhão, que me motivou inclusive no aprimoramento de O Teatro da Rotina. Ela rendeu ainda mais textos e amizades e a publicação da coletânea Eros Ex-Machina (@link editora, 2018), sobre robôs sexuais.
FERNANDO ANDRADE – Você trabalhou em grandes redações de jornais como a Veja são paulo e o Estado de São Paulo, Me diga quais são as principais diferenças de um texto jornalístico para um literário, esta transição entre estas duas linhas foi muito traumática para você adquirir uma voz eminentemente literária?
ALEX XAVIER – As oficinas que fiz me ajudaram nesse exorcismo, para tirar o jornalista deste corpo de escritor de ficção. Eu não fazia ideia do quanto meu texto estava viciado em passar informações ao leitor, por exemplo. Tudo tinha que ficar muito claro, mastigadinho. Em um texto de ficção, você precisa deixar o leitror pensar sozinho, muitas vezes até enganá-lo, encontrar uma voz que está longe da imparcialidade de uma reportagem. Ainda sou jornalista, então instalei essa chave no meu cérebro para continuar fazendo essa alternância. Também me preocupava muito em escrever certinho, como se seguisse um manual de redação. E isso deixava meu texto mais duro, com certeza. Quando me soltei mais e adotei várias vozes, também comecei a me divertir mais com a escrita. Gosto de experimentar bastante. No coletivo, criamos um projeto chamado de Isso Não É Literatura, um zine com prosas e poesias em formatos considerados não literários, como bula de remédio, cartão postal, panfletos de igreja, receituário médico. Eu usei um manual de instalação de eletrodoméstico como base para uma crônica sobre um homem na crise dos 40. Também escrevi um conto, fora do livro, que usa a linguagem de um obituário. Mesmo como jornalista, passei 11 anos escrevendo para o jornal O Estado de S. Paulo a coluna do Cri-Crítico, um personagem fictício, ranzinza e metódico, que fazia crônicas do universo dos cinéfilos. E eu tinha muita liberdade nos meus textos, então estava já acostumado a romper com a minha escrita jornalística.
FERNANDO ANDRADE– O que é o fascismo dentro de certos grupos sociais? Digo isso, pois achei muito bom o conto Vizinhança, que introduz ao leitor todo um processo de ramificação no cotidiano fascista, de um discurso de total embotamento ao outro. Não há qualquer perspectiva de alteridade possível para aquele personagem. Comente.
ALEX XAVIER – Todos os personagens do livro são reais de alguma forma. Este do Vizinhança, um senhor que se incomoda com um morador de rua que ele vê todo dia perto de sua casa, é apenas o retrato do homem branco que não se dá conta dos próprios preconceitos, de seus privilégios, de sua mentalidade opressora. Cruzo com gente assim o tempo todo no meu bairro de classe média alta. Acho que o fascismo se instala silenciosamente até surgir alguém que traduz em um discurso todo esse ódio, esse medo, esse moralismo raso e esse desprezo pelo outro e as pessoas tomadas por tal pensamento mesquinho se vêem representadas e livres para também expor o que sentem da pior forma. Mas a maioria delas não se enxerga fascista. Pelo contrário, se consideram “cidadãos de bem”. E todos têm uma justificativa, em geral culpando as minorias, para seus atos de racismo, de machismo, de homofobia. Agora, quando coloco um personagem assim como protagonista, preciso respeitar seu ponto de vista, sem julgá-lo. Para não virar um texto panfletário e estereotipado. Não sei se consegui. É um exercício muito pesado de empatia. Mas tive que fazer bastante isso no livro. Na verdade, a maioria dos protagonistas dos meus contos são pessoas que eu não convidaria para tomar uma cerveja em um bar.
FERNANDO ANDRADE é jornalista, poeta e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemometria , e Enclave ( poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018, o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie pela Editora Penalux.
Be the first to comment