Fernando Andrade entrevista o escritor João Paulo Parisio

PARISIO - Fernando Andrade entrevista o escritor João Paulo Parisio

 

 

FERNANDO ANDRADE – As narrativas que você escreve tem uma relação muito especial com o mito, as fábulas, ao mesmo tempo que traz à vida objetos de afeto como uma boneca de pano, aqui o mundo infantil pelo olhar de uma criança para tomar vida num conto inverso onde a boneca adentra o mundo dos adultos. Me pareceu que há uma estrada de mão dupla que você trilha entre a fantasia de um história infantil e o universo adulto, com seus perigos (incêndios) Fale disso?

JOÃO PAULO PARISIO – Fico feliz com essas percepções suas, Fernando. Encaro os dez contos do livro como fábulas, uma mandala de fábulas. Ainda que fábulas inadequadas para menores, e nem moralizantes nem pedagógicas. Como me interessa de fato uma literatura que sobrevoe demarcações de gênero, esses currais da criatividade, faz todo o sentido falar numa via de mão dupla entre o infantil e o adulto. Num conto como Boneca-de-Pano, há referências e apropriações de elementos típicos de um folclore voltado para crianças. Contos-de-fadas, estórias da carochinha. A mitologia perpassa todo o livro.

Acho que a transição de Boneca-de-Pano é antes de mais nada a de um ser que se enxerga como adereço (adereço produtor de adereços), existência-satélite, para outro que descobre a sua dignidade humana, seu direito a um destino próprio, a tecer a própria filigrana na barra do tempo, sua condição de mulher, sua maturidade para o amor, através do apaixonamento (um primeiro incêndio) e da percepção do caráter meteórico da oportunidade, na vida. A reciprocidade é um segundo incêndio, entre ele e o terceiro Boneca-de-Pano pisa um território em que nunca estive. A reflexão de Inês sobre carnivorismo em O caso do cisne ou O ocaso de Inês também vai além das que eu já fiz. Algumas pessoas que leram o livro me perguntaram se sou vegetariano, outras, se sou reencarnacionista. Não sou. Sou um cético místico, onívoro.Também no quesito alimentação. Nesse sentido, o escritor é mesmo o cavalo do personagem, a ficção, uma grande experiência de projeção na alteridade. E mitos também não são feitos para nos arremessar além dos estreitos limites do rame-rame diário do atrito mundo versus ego?

 

FERNANDO ANDRADE – A escrita estaria além de uma fronteira de marcação de gêneros? Escrevemos com o passado nas nossas costas, e de certa forma temos a criança que formos um dia numa página ou folha do segundo conto, (Apólogo de identidade) uma folha que é ao mesmo tempo projeção ao futuro (um enredo porvir) mas também reminiscências trabalhadas pela linguagem.

JOÃO PAULO PARISIO – Fiz a travessura de responder em parte a essa pergunta na resposta anterior. Nanete Neves usou a expressão “nonsense de qualidade” para se referir ao livro, o que me deixou perplexo ainda que lisonjeado. Nunca pensei em ser nonsense. Isso foi no instagram. Vi que ela falou algo parecido dos contos de O Teatro da Rotina, de Alex Xavier; me tranquilizei um pouco. Talvez Nanete, com seu faro lítero-jornalístico, esteja captando no ar isso a que você se refere. Talvez eu preferisse chamar de não-gênero, nongenre?, em vez de nonsense. Ser um outsider dos gêneros, ou pensar em termos de pangênero. Mesmo porque tenho a opinião de que o fantástico não é um gênero da expressão literária, mas a literatura um gênero da expressão fantástica, sendo o realismo apenas um subgênero, o “fantástico involuntário”.

Ariano Suassuna foi também um dedicado professor e pesquisador. Num livro menos conhecido que suas peças de teatro, Iniciação à Estética, nos fala de como o próprio Zola, propondo-se a representar a vida com fidelidade científica em seus romances, trai o intento. Tanto isso é verdade que não me espantaria saber que a abertura e a atmosfera de O Castelo de Kafka devem algo a sua leitura de Germinal. Reproduzo um trecho de Ariano:

“Nós vamos mais longe, ainda: mesmo os artistas que pretendem ou pretenderam copiar exatamente a Natureza, recriam-na, sem querer. Parece que Ingres desejava isso na Pintura, e Zola na Literatura, mas nenhum dos dois o conseguiu. Pelo contrário: talvez não tenha existido, na Literatura do século XIX, uma corrente literária mais criadora de “monstros deformados” do que o naturalismo. É que, de fato, Zola, desejando copiar pessoas e acontecimentos da vida real, somente via, na realidade, aquilo que correspondia a seu estranho universo interior.”

Edward Lear, nascido ainda no começo do século XIX, é considerado o pai do nonsense e um avô do surrealismo (embora ele com certeza tenha bisavôs e tataravôs espalhados pelos séculos e países). Há num poema seu sobre uma “bela dama” que acaba devorada por um gigante os versos

Procuraram pelo menos um osso

para o enterrar respeitosamente.

Poderia ser a epígrafe de Boneca-de-Pano, mas também de Nêfelis, sendo que nesse caso o osso em questão seria do próprio gigante. Lear era conhecido por suas ilustrações de aves fantásticas. Antes de ser esse artista, entretanto, ele era um aclamado ilustrador científico, que tinha preferência por modelos vivos, na contramão da prática em voga na época. Seu livro de ilustrações de papagaios, surrealmente reais, alçou-o à fama com apenas vinte anos (dei uma olhada na Wikipédia). Talvez essa fábula tenha uma moral: a fantasia não é uma espécie de inconsequencialismo artístico, ou o famigerado escapismo, mas uma forma peculiar de elaborar a seiva da vida, sem ater-se à casca (embora a utilize também em suas infusões).

O artista ligado ao explícito fantástico não é um ser humano desinteressado da realidade. Dela retira a matéria-prima com que executa sua alquimia e atinge seus resultados imprevisíveis, inventa suas pólvoras, intenta suas pedras filosofais.

 

FERNANDO ANDRADE – Sua linguagem é muito bem absorvida pelo viés da história que você narra. No conto O observador, ao aprofundarmos no universo marinho e submerso há uma rica camada de descrições de animais daquele meio como uma linguagem bem poetizada. Acho muito interessante esta adequação sua ao reino que conta com um tipo de nuance que faz através de uma linguagem detalhista. A linguagem é um universo próprio dentro da fabulação?

JOÃO PAULO PARISIO – Pra mim, sim. Muito. Ou melhor, entrelaça-se à fabulação de tal modo que já não se sabe o que é uma coisa e o que é outra. Lembro de uma vez ter ficado chocado ao ler numa entrevista de Cortázar que para ele, não. Ou será que me engano? Porque no início eu achava que era para todos. Uma amiga uma vez disse que gostava do modo como eu assediava os detalhes, na escrita. Adorei essa expressão dela, “assediar os detalhes”. A escrita de ficção é um experimento mental abrangente. O escritor em ação é como o capitão Naum mergulhando cercado de seres inadvertidos. E é um mergulho, de fato. Ferreira Gullar falou em algo como um transe lúcido. É assim. No texto que resulta, isso transparece como o assédio do autor aos detalhes: foram os detalhes, os minuciosos seres que o beijaram, fizeram queimaduras nele como águas-vivas. Também o prazer, o espanto, deixam queimaduras. Se um escritor imagina uma pena e uma bola de ferro caindo da torre de Pisa, tenta ou sofre a tentação de ser a pena, a bola, o vento, a torre, Galileu soltando a pena e a bola ao mesmo tempo, a atenção de Galileu concentrada nessa simultaneidade, suas mãos pequenas e nodosas, os punhos brancos encardidos e bufantes ressaindo da camisa verde-musgo (será que eram assim? Ah, parece que Galileu nunca esteve lá com a pena e a bola, fez apenas um experimento mental), seu hálito alterado pelo nervosismo, seus olhos insones, uma passante que, de baixo, observa a cena (ela usa enchimento nos ombros, está de amarelo, tem cabelos castanhos e finos), o cocô de gaivota que no exato instante do lançamento cai no ombro de Galileu como a maçã na cabeça de Newton… Pode ser que depois o escritor vá comprar pão na padaria Santa Terezinha. Está todo tatuado pelas visões que teve, mas ninguém vê, como o nome da padaria, que não tem letreiro na fachada.

 

FERNANDO ANDRADE – Há uma série de influências tanto da Tv quanto do cinema com relação a um imaginário imagético sobre redenção, pertencimento. Como foi sua formação em termos de identidade-visual?

JOÃO PAULO PARISIO – Deve haver, essas influências. Não sou propriamente um cinéfilo, embora goste muito de cinema. Dia desses me encantei (sim, essa é a palavra) com Os oito odiados, de Tarantino, e uma leitora disse que Bio Boi tem um quê tarantinesco. Minha geração cresceu vendo filmes na TV à tarde, à noite e, se brincasse, de madrugada. E novelas. Sempre tive uma queda por filmes voltados para o fantástico, a ficção científica, o terror, talvez. Mas O Poderoso Chefão também é um de meus preferidos, desses que volta e meia a gente revisita.

 

FERNANDO ANDRADE – No conto último ato do peixe há um elemento sócio-cultural forte onde você roça as histórias apocalípticas, um tema muito usado no cinema. Qual o ponto que você faz de uma apropriação cultural, (neste vasto campo das referências) neste conto me parece que há elementos antropológicos, sobre cultura forte.

JOÃO PAULO PARISIO – O conto se passa num estágio anterior à civilização, mas em que a rudimentar estrutura social já se vê ameaçada por um cataclismo. Assim como há um poeta anterior à palavra, trata-se, realmente, de um apocalipse anterior à cultura. Porém acho que esse conto é mais tributário daNoite Ancestral, primeira parte de 2001, uma odisseia no espaço, uma hipótese para a aurora da consciência humana, que de qualquer filme apocalíptico ou distópico. E eu assisti ao filme de Kubrick, mas também li o livro de Clarke. Vi outros filmes de Kubrick, li outros livros de Clarke. Fala-se muito de literatura como se só fosse influenciada pela própria literatura (e pela macroestrutura). As influências vêm de todas as artes, de todas as partes.

 

FERNANDO ANDRADE – Há uma interessante cruzamento entre veios biográficos e ficção no conto José K. Como foi fazer a relação entre obra e criatura, entre invenção e vida?

JOÃO PAULO PARISIO – Curioso você ter concluído isso tão prontamente. Esse entrelaçamento foi natural, o conto se desenvolveu como qualquer outro, como Nêfelis ou O observador, por exemplo, que são distantes da experiência cotidiana. No edifício em que morei 20 anos, havia um campinho murado nos fundos exatamente como o do conto, e a descrição do jogo é bastante fiel (ou assim diria Zola), mas nunca aconteceu de alguém precisar ser internado depois de um chute nas costas. Eu não era bom, como José K., no máximo tinha dias bons. Uma vez, entretanto, recebemos a notícia de que um coroa que costumava jogar conosco, e jogara no dia anterior, fora assassinado em frente a uma escola. Três tiros na cabeça. Ele, que gostava de contar casos de delegacia…

Meu pai não é um acadêmico: foi um fornecedor de cana que ainda solteiro comprava coleções inteiras de livros aos caixeiros-viajantes que batiam de porta em porta até nas brenhas fundas distantes das rodovias, ao pé das matas. Quando meu eu-leitor deu por si, já tinha à disposição obras completas de Machado de Assis, Eça de Queiroz, José de Alencar (não que eu tenha lido tudo, nem de longe), uma enciclopédia Delta-Larousse, as coleções Conhecer e Gigantes da Literatura Universal, etc., sem falar na parte do acervo que não sobreviveu às enchentes anuais do rio Una. Como você está notando, esse dado biográfico rebate no conto A idade da revelação.

Em suma, mesmo a ficção que se utiliza do veio biográfico (em última análise toda ela se utiliza) bifurca-se dele, porque é ficção, intencionalmente. Quanto ao gênero biografia, constitui ficção não intencional.

 

 
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FERNANDO ANDRADE, 50 anos, jornalista, poeta e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemoemetria , e Enclave ( poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018 o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie,  Editora Penalux.

 

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