Capítulo do romance Vista parcial do Tejo publicado pela editora Patuá em 2018 – Rafael Fernandes

 

foto divulagação - Capítulo do romance Vista parcial do Tejo publicado pela editora Patuá em 2018 - Rafael Fernandes

Rafael de Oliveira Fernandes nasceu em 1981, em São Paulo.  É graduado em Direito pela USP.  Autor dos livros de poesia Menino no Telhado, 2011, editora 7letras, Cadernos de Espiral, 2014, editora 7letras e do romance Vista parcial do Tejo, 2018, editora Patuá. Participou da exposição Poesia Agora, no Museu da Língua Portuguesa, em 2015 com cerca de 500 poetas com produção relevante no cenário contemporâneo.

 

 

 

 

De repente,um estalo embaixo de mim me assustou e percebi que, sem querer, após forçar a torneira, havia conseguido fazer a água passar livremente por ali. Gabriela a alguns passos, olhando para a rua, dizendo algumas coisas sobre, por exemplo, um grupo de garotos que havia passado descontraído, seguido por uma garota de cabelos pretos, que certamente estava um pouco interessada em um dos garotos, tentava descobrir o que eu fazia. Eu estava compenetrado no funcionamento daquele sistema sinistro. Sequer a vi se aproximar, abandonando as portas abertas mas que ainda se mexiam. Gabriela me dizia, dando risada, quase sussurrando, que era um pouco ridículo o que eu fazia. Eu me virei para ela. Ela repetiu a frase e, de repente, estancou ao ver o que eu tinha no campo de visão. Eu segurava alguns daqueles cabelos, ainda molhados e enroscados, mas Gabriela não podia acreditar que eu o fazia. “Que nojo”, ela disse. Eu dei risada. Então ela se espantou ainda mais ao notar, talvez, minha cara de perplexidade, de admiração por aquele tufo de cabelos que saíra de repente. E falou: “Nossa, que coisa, hein.” Mas agora era eu quem não ouvia. Eu abrira a torneira definitivamente, e em segundos o tufo de cabelos passara a encobrir quase toda a pia. Eu observava o encanamento com cuidado também. Porque já não tinha certeza se os cabelos tinham vindo da torneira, junto com a água, quando a abri de repente, ou pelo ralo, porque o tapavam, quando a água desceu com grande força, liberando o veio. Disse isso à Gabriela. Como se fosse muito importante. “Não sei como apareceu.” E ela falou: “É meio estranho não acha? Prestar tanta atenção a isso.” E riu novamente. Mas vendo seu sorriso sarcástico, me perguntando silenciosamente por que eu fazia isso, embora já soubesse a resposta ou a adivinhasse há tempos, resolvi contra-atacar: “Acha que é ridículo mesmo? Que devemos deixar tudo assim?” Gabriela se aproximou da pia, fechando a torneira, como se obedecesse ao meu segundo comando, ou seja, de não causar mais danos, fosse à pia, fosse aos cabelos. E falou. “Acho um pouco ridículo. Por que está tão preocupado? Acha que deve limpar tudo isso agora?” E eu disse, tentando não ser agressivo: “Ora, Gabriela. É minha responsabilidade, eu abri a torneira. Devo limpá-la e à pia, ao menos. Fui eu quem sujou a pia. Eu sei que a casa está abandonada, que a senhora até nos deu as chaves, mas e se alguém chegar de repente?” Nesse momento, a Gabriela caiu na gargalhada. O apartamento certamente estava vazio há décadas, ela disse, a própria senhora corcunda, com roupas velhas, que quase não conseguia subir as escadas e que morava no primeiro andar dificilmente chegaria até ali sem ajuda. Ninguém nos próximos cem anos, talvez, aliás, quem sabe no próximo milênio,voltaria a morar ali e visitar aquele apartamento, eu não precisaria me preocupar, além disso, o apartamento estava ali há séculos, as estruturas eram sólidas, ainda que houvesse uma enchente ou algo parecido, depois dos mesmos séculos ou milênios ele certamente continuaria ali. E você não percebe, ela disse, que é apenas com as pessoas que moraram aqui que devemos nos preocupar, e não com o apartamento? Ninguém liga para essa coisa, quero dizer, não porque não devam ligar, porque seja uma porcaria,mas simplesmente porque não é preciso. Ela observou, assim, que eram as pessoas apenas que pareciam desaparecer ali, ou apenas se revezar, indefinidamente, o que era o mesmo que dizer que nunca por ali houvessem passado, ou seja, que o carregador de malas nos enviara para uma espécie de limbo, não um outro plano, ou uma cidade perdida, como se pensava nesses casos, mas justamente o contrário, as pessoas desapareciam à nossa frente, em plena luz do dia. O local, ela observou, não parecia nem estar no mapa, mas não importava. E havíamos, inclusive, chegado ali por acaso, sem atentar para o nome das ruas, mas isso não importava também, o importante é que parecia que sempre estivera ali, e que sempre estaria. E depois, voltando ao assunto inicial, afirmando que não importavam as condições do apartamento, o que importava era aquela atitude quase ridícula, ela disse: “Olha, a questão na verdade é a seguinte. Não importa se o apartamento é velho ou não. A questão é que eu estou olhando para o rio, uma paisagem que, apesar desse corredor de prédios na nossa frente, é bem bonita e quase única. Tento buscar uma imagem surpreendente para a foto, que talvez vá parar em alguma exposição, que tenha algum significado minimamente importante e demande algumas considerações. Pensei em pedir para você aparecer nela, até, sabia disso? O que quer que eu diga? Que você deve continuar procurando cabelos molhados e apodrecidos nesse ralo sujo?” Eu tive que dar risada. E até um tapa em suas costas, a incentivando. Eu concordava em parte com o que ela tentava me dizer, claro, que a princípio, aquela cena grotesca, os fios de cabelo, a pia entupida, meu gesto pretensamente nobre, não diziam muita coisa.E Gabriela completou, me olhando de cima para baixo, com autoridade: “Pois é, eu sei que concorda comigo, e mesmo assim você fica aí parado, olhando para baixo, olhando para o ralo, para essas porcarias, não acha estranho?” Ela me deu um tapa na cabeça, que era ao mesmo tempo um aviso e um afago e a seguir, mais confiante, esquecendo o que dizia, estava pendurada sobre a pia equilibrando-se no apoio de mármore, olhando para baixo, como eu fazia, e estranhamente, de repente, se concentrara no tufo de cabelos e na água que começara a pingar novamente, como se aquilo fosse a coisa mais importante do mundo. Ela estava atenta, curiosa, algo realmente despertara seus sentidos, como acontecera comigo há pouco. Gabriela disse: “De quem seriam esses cabelos? Acha que é possível descobrir? Pensei nisso agora.” E olhou para mim com espanto. Como se “aquilo”, ao menos, essa conclusão inesperada fosse muito importante. Eu dei risada, claro, queria mesmo abraçá-la, pois naquele instante havia pensado a mesma coisa, havíamos nos entendido, ou havíamos nos comunicado por um canal que nunca sabíamos como funcionava direito, subterrâneo, escondido, como aquela torneira intermitente. Por fim, talvez tentando novamente se adiantar, talvez tentando se redimir, mas sincronizando os pensamentos aos meus, Gabriela sentenciou, fazendo uso de nosso canal, com uma nova risada: “Eu quero te mostrar uma coisa, é claro, vamos tirar uma foto bem bonita, eu sei que você também acha importante. Mas antes, também, vamos tentar descobrir quem eram e o que faziam as pessoas que moravam nesta velha casa. Especialmente quem era a dona desses cabelos, quem era essa moça bonita.”

 

 

 

 

Please follow and like us:
Be the first to comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial