FERNANDO ANDRADE – Acho que estamos no cerne de um estado de “normalidade” onde as pessoas do “bem” pregam uma supremacia tanto de raça quanto de gênero, credo. E seus contos abordam uma certa mutação muito bem vista sob o ponto de vista do humano. Tanto no conto que abre o livro, das bananas quanto no conto prédio, sua escrita acompanhada de sua mente inquieta traçam os variados processos identitários do mundo de hoje. Usando a literatura de gênero fantástico como foi falar destas questões?
ROMY SHINZARE – Falar sobre questões relacionadas a temas como supremacia de raça e gênero é tão delicado quanto urgente. O “normal” é relativo, depende do olhar de quem observa. Isso passa pela subjetividade de cada um, o grau de instrução, experiências e tantas outras variáveis complexas. Além dos riscos inerentes aos temas, existe então esse outro lado, das várias possibilidades de leitura advindas das diferentes experiências histórico-culturais que cada leitor eventualmente pode ter. No entanto o mundo está ao nosso dispor, para ser observado, pesquisado, registrado, vivenciado. Estamos mergulhados na realidade com o tempo correndo muito velozmente e nos apresentando questões diferentes num instantâneo que logo se apaga. Precisamos aprender a “agir na urgência e decidir na incerteza” nos ensina Philippe Perrenoud e isso exige muito de todos nós, mas é preciso aceitar esse desafio. A imobilidade gera riscos de repetirmos erros de outrora, contribuindo para o status quo.
Concordo com Silvio Silva no prefácio do meu primeiro livro, quando diz que “escrever é uma sina”. Acredito que quando a carregamos, abrimos os espaços e simplesmente o fazemos, sem grandes ponderações. Usar o fantástico para estas abordagens me ajuda na medida em que liberta meu imaginário e posso brincar, criar e recriar a realidade, dando tons ora mais densos, ora mais suaves nesta dinâmica. Isso se apresenta no Ministério da Solidão através da fragilidade daqueles seres, conjugada com suas tentativas frustradas para organização e a ação. Terminam fadados a uma vida medíocre, desprovidos de capacidade crítica, sob o jugo de um potente controle externo. E quem se importaria com a sub-raça dos Bananas senão quem os criou para o fim específico de produzir e gerar riquezas?
É um ciclo perverso que dilui num sistema sócio-político-econômico, cheio de graves contradições, as causas dos problemas. É a total falta de sentido e lógica de tudo, a exposição do absurdo que repousa sob o véu da “normalidade”.
Quem já não viveu situação análoga a narrada no conto O Prédio? Ambiente opressor, hierárquico e cheio de pequenos poderes e traições, todos atuando para o nada, ou melhor, para benefício de um único ser que ninguém sequer conhece! Coloco um pouco mais de tinta propositadamente, num jogo Reverso em que o inusitado se apresenta ao leitor(a) de forma a tirá-lo de uma zona de conforto, gerando estranhamento com a situação e conduzindo-o a refletir sobre os descaminhos que a humanidade trilha.
Falar sobre essas questões usando o gênero fantástico é a minha forma de fazer arte e espero que as pessoas gostem.
FERNANDO ANDRADE– Como é mexer com certos ícones e símbolos, como o conto da estátua da liberdade? A ficção científica ou até o fantástico não seriam um modo reverso de olhar uma realidade obtusa mas que entrando dentro das camadas das leituras mais libertárias elas se fazem, no modo – analisar ou criticar esta política conservadora que mantém um status quo que prega a força a violência? O que há por trás dos mitos?
ROMY SHINZARE – Acredito que as controvérsias estão pelo mundo, basta olhar com cuidado e as encontramos, o surreal e o fantástico estão à espreita a cada esquina, “o mundo que nos espanta e nos horroriza está muito próximo dos mundos fantásticos fictícios que nos maravilham e horrorizam…”, bem diz Caio A. Bezarias no prefácio do livro. É com essa proposta que trabalho.
Os mitos foram narrativas utilizadas pelos Gregos para explicar fatos da realidade e fenômenos da natureza que não eram compreendidos por eles. Simbolicamente se apresentavam na forma de personagens sobrenaturais, deuses e heróis que transmitiam à humanidade o conhecimento que ela e a ciência não dominavam. Possuem um caráter arquetípico. Os mitos estimularam a propagação de ícones e esses passaram a atuar em três sentidos: oferecer explicações que justificassem o mundo; organizá-lo através de proibições e permissões e oferecer compensações de perdas. A estátua da liberdade carrega exatamente estas forças, representa um império que opera distribuindo proibições, permissões e recompensas de acordo com os interesses de seus governantes. O ícone dá voz e endossa as ações daquele povo, turva a visão de quem observa, apresentando um viés que serve a diversos interesses – coloca uma fina camada de verniz na realidade, deixando-a mais bela aos olhos de quem vê.
A estátua funciona como representante e protetora daquela nação, é suntuosa e grande como um deus e olha diretamente para a cidade. Suas vestes são de uma Deusa Grega! Veja que a relação está posta.
Dar ânima a estátua como fiz no conto Mrs Liberty, transformando-a em uma mulher que nunca esteve à margem dos acontecimentos e, ao contrário, observava e acompanhava de seu pedestal toda dinâmica daquele povo, formando opiniões sobre o que via, enfim, torná-la humana, pode soar profano aos olhos de alguns leitores que a consagram, mas os obriga a exercitar a imaginação e suscita dúvidas. Convida o leitor(a) a refletir sobre os sentidos das coisas, sobre os próprios rumos da humanidade na medida em que expõe o ícone de uma forma completamente diferente do que eles esperavam, com ações imprevisíveis e diretas no mundo real, quebrando paradigmas.
Ao longo da história, a humanidade fez uso dos mitos e ícones e neles depositou sonhos, crenças, valores, dúvidas, explicações… essas imagens sintetizam anseios dos homens, que diante de uma sensação de impotência, vê neles esperanças de dias melhores e mesmo a manutenção de uma força e um poder que remonta à antiguidade.
No caso de Mrs Liberty, através do fantástico a estátua mostra que aprendeu de fato o que seu povo ensinava, ela reverte o mito, expõe suas fraquezas e seu lado humano quando se revolta contra aquela nação e ganha a liberdade tão merecida.
O contrassenso de um ícone da liberdade num dos países mais predadores do planeta é comum, o mundo está cheio dessas incoerências. A maioria das pessoas vive em busca de um “salvador” para nele depositar suas pequenas vitórias. Basta olhar ao redor e nos deparamos com dinâmicas assim o tempo todo.
Proponho a observação do mundo sob outro prisma, reduzir a velocidade do giro e das horas e adotar outros tempos de ser e estar no planeta. Há por um lado, muitas complexidades na vida e por outro, o total vazio. Cada hora tendemos para uma direção da história, num constante ir e vir sem sair do lugar e, às vezes, retrocedendo mais que avançando. Talvez fosse importante repensar esses rumos, resgatando sentidos originais das coisas e avançar mais lentamente, mas avançar.
Em meu conto a estátua da liberdade é o ícone, a liberdade é um mito. Parafraseando Fernando Pessoa “o mito é o tudo que não é nada”, ele é um vetor sócio-cultural que agrega as representações importantes da existência do homem no mundo, ganha por isso muita força, porém na mesma medida fragiliza-se ao ser encarado como verdade absoluta, pronta, acabada.
FERNANDO ANDRADE – Há alguns contos como operação baltimore que mexem com certa reversão de expectativa, onde há um certo estereótipo à ser quebrado, quando começamos o conto não esperamos o seu final, embora o desfecho seja ótimo e bastante plausível. Como é trabalhar a escrita tendo estes contos tão reversos?
ROMY SHINZARE– Via literatura ficcional proponho a reversão da ordem que está posta, mas faço isso porque a realidade me dá elementos. O capitão do mato existiu e ainda existe numa nova roupagem. Com um exagero intencional criei em Operação Baltimore uma personagem negra que é membro da Ku Klux Klan. Kafkiano? Sim, como em Colônia Penal, onde o homem que será submetido à máquina de tortura, admira toda aquela parafernália ao lado do policial e do técnico que a manuseia. Temos mestres que nos ensinam a aprender pelo reverso. A mim parece que impossível está cada vez mais próximo do possível.
Ainda neste conto mexo com o estereótipo do “bom pastor” que seria um homem incapaz de carregar raiva, rancor e agir com base no sentimento de vingança. Todos esperam que essa pessoa carregue o dom do perdão eterno, mas vemos tantos escândalos envolvendo padres, pastores! Por que isso acontece? Alguma coisa deve estar errada. É preciso fazer perguntas e buscar as respostas o tempo todo para ir “desfolhando” o mundo, não para chegar a uma resposta correta, mas para chegar a novas questões e reflexões.
Gosto da literatura que incomoda, que subverte a ordem das coisas e deixa a famosa “pulga atrás da orelha”, romper estereótipos, essas imagens pré concebidas, essas generalizações simplificadas de uma pessoa ou de um grupo social é uma forma de fazê-la. Adotar uma postura de estranhamento e flexibilidade nunca foi tão importante.
FERNANDO ANDRADE – Há uma preocupação sua? em olhar a vida dos personagens através de viés social. Ou eu diria as deturpações que o social filtram ou mexem nas pessoas. Como seu trabalho como educadora na área da comunicação e arte influenciou o livro, principalmente nos enredos e na escrita?
ROMY SHINZARE – A educação está no “olho do furacão” dos conflitos sociais, cada escola é uma pequena representação da sociedade em que está inserida. Às vezes esta área é tratada como “salvadora da Pátria”, eu diria que mal salva a si mesma. Temos um sistema hierarquizado, burocratizado e na maioria das vezes inflexível e perverso. A escola tem a função social de trabalhar com o conhecimento acumulado pela humanidade e sua transmissão, atua na preservação de valores, sem aderir a modismos. Ao mesmo tempo trabalha com a juventude que clama pelo novo e pelo moderno. Conflitos.
Vale também observar que as escolas públicas estão sob o poder do Município, Estado ou União, logo, veiculam os valores que essas estruturas defendem sob o princípio da legalidade. As escolas particulares são empresas. A diferença entre elas está no seu fim último: a escola pública visa educar, a escola privada visa o lucro.
Há grandes distorções em nossa sociedade, alunos de classe média alta e classe alta estudam em escolas privadas no ensino básico e em universidades públicas. Os de classe média baixa e baixa estudam em escolas públicas no ensino fundamental e em universidades privadas, com raríssimas exceções. Essa inversão de vetores já demonstra o quanto tudo é perverso e injusto. Há um poder econômico atuando acima dos valores sociais, há um poder político autuando antes da educação. Fica difícil fechar a conta.
É preciso assumir que numa sociedade excludente como a nossa, estudar jamais será prioridade a uma pessoa que não tem onde morar ou o que comer em casa, o trabalho lhe será mais importante que os estudos. Quantos brasileiros não abandonaram os estudos para trabalhar? Alguns nem freqüentaram bancos de escolas! É preciso pensar na educação dentro da sociedade, aí percebemos que a escola é somente uma parcela de algo muito mais amplo.
Esse ambiente influencia minha escrita na medida em que coloca a minha disposição um universo vário e repleto de conflitos e incoerências. Adotar como princípio que quem estudou é melhor do que uma pessoa que não estudou é ser simplista e superficial. Ou dizer que não estudou porque não quis também o é. Destaco aqui, e nem poderia deixar de fazê-lo, um mestre da educação que é Paulo Freire com sua Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Autonomia, Pedagogia da Esperança, etc… e principalmente o vínculo que esse educador fez entre trabalho e escola; ensinando uma educação para a liberdade.
Além dessas experiências com o meio, tenho influências de outros autores que admiro como Dostoievsky com os irmãos Karamasov e Crime e Castigo; Kafka em O Processo e Metamorfose; os romances policiais de introdução dos jovens de minha idade na literatura policial como Agatha Christie e Edgard Allan Poe, Honoré de Balzac, Flaubert, Choderlos de Laclos e Machado de Assis com os romances de época expondo costumes da corte burguesa emergente do século XIX, muitos deles ainda presentes em nossa sociedade, Isaac Azimov, JRR Tolkien, Stephen King, Clive Barker com Livros de Sangue e Desfiladeiro do Medo, entre outros.
FERNANDO ANDRADE, jornalista, poeta e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemometria, e Enclave (poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018 o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie, Editora Penalux.
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