Do livro o amor curvo, daniel gil
D
Minha amiga, não chame o seu amigo
De “amigo”. Antes, dê-lhe uma facada
No abdômen e tire fora o seu umbigo
Mas “amigo” é palavra atormentada.
Um “não” certeiro, pronto! e mais nada
Ou de comparsa, cúmplice ou prefira
Chamar de transviado, Pombajira
Mas nunca dessa música assombrada.
Os homens, minha amiga, têm o mal
De perturbar aquilo que é normal
E um dia se perturbam com o amor
E noutro com a palavra… Por favor
“Gosto muito de ti, eterno amigo!”
Nem que muito mereça o inimigo.
§
E
Eu te amo com espanto
E solidão.
Com as lâmpadas oblíquas
Do céu fechado
Da roupa esgarçada
Do incrédulo que reza
E não sabe.
Amo como um troglodita
E não te digo
O amor curvo
Feito criança com medo.
Mas esse meu amor
É mais bonito que a água
É simples como um tropeço
É maior que o tempo
Esse adivinho espantado
Ensimesmado.
Eu te amo como quem
Já não acreditava.
Juro.
§
G
O amor perpassa o policarbonato
A matéria magnética dos discos
Kubricks, Polanskis, a anteposta luz
Ainda a desvelar. Seus dentes místicos
Incidem sobre cordas, pregadores
As roupas gotejantes da semana
A máquina, a memória (tudo gira
E se desbasta, mas o amor acorda
As cortinas). O vidro se trepida.
Chaves, página, tábua de cortar.
O amor combina as borras do café
Imbica a direção dos passos, vai
Sem destino imediato. Não colide
O espelho, a reflexão, os Four Quartets
O elétrico aparelho de afeitar
Na pia (em nada se depara, o amor
Renasce de si mesmo, sucessivo
Sem tributos à morte). Seus anéis
Tintinam o interior impermeável
As realizações. O amor se lança
Ao termostato, às linhas de drenagem
Acondiciona serpentinamente
As paredes, o jeans na maçaneta.
Súbito sobressai das luvas de
Boxe, da vida oculta dos cabides
Do juramento inabalável (dentro
Da vibração do dia, sempiterno
Emenda sonho e vigilância). Tufa
Os travesseiros. O edredom intui
Adivinha sua própria gramatura
À investida do amor. É ele! o sopro
O movimento que repousa
Em mim, em ti, Amor da minha vida.
§
Daniel Gil é poeta e ensaísta. Autor, entre outros, de “O amor curvo” (Oito e Meio, 2018); organizou recentemente livro póstumo de Vinicius de Moraes, “Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro” (Companhia das Letras, 2018). É secretário executivo da UFRJ, onde conclui o doutorado em literatura brasileira; foi músico da Companhia Folclórica do Rio e atua eventualmente em pesquisas editoriais.
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