Foi no dia seguinte à cena do chapéu quando parei de sonhar. Encrencou-se a máquina noturna que me mantinha atrelado à vida e descobri-me em cavernas profundas sem qualquer luz ao fim. De nada valia tatear a escuridão, acariciar as paredes rochosas que me cercavam, o sono não se nutria de imagens, apenas do breu sem estrelas que me aterrorizava.
Certa manhã, flanando pelas esplanadas da cidade, anunciou-se um vento como não se conhecia desde 1882 (se o ano de 1882 existiu e contou com um furacão é questão que aqui não nos cabe responder), as notícias propagavam que a população se abastecesse para dois ou três dias com provimentos que perdurassem a falta de eletricidade. Aqueles andantes de olhos perdidos encontravam, por fim, finalidade, sobreviver às ventanias vindouras do Atlântico revolucionário de águas arremessadas sobre os dois lados do continente. Eu caminhava com o peito desprotegido, sem mulher que pregasse os botões da camisa encrespada, sem paixão que me aliciasse o coração. Fiz dos meus os teus, disse-me a última em tom singelo antes de partir e deixar-me com as latas de atum sobre a mesa de jantar e o toco de vela derretida sobre o candeeiro de cobre em forma de avestruz. Diferentemente da amante desaparecida, desaprendi partir, aguardo que me cheguem os cobradores, os amores de faux-cuir, as luas roliças com São Jorge e seu escudo emprestado ao Dom Quixote, pois que as lanças do destino alcancem-me, gritei à vizinha que pendurava a roupa íntima no varal e não se envergonhava dos panos frouxos e da lassidão com a qual me encarava. Era uma dona vulgar, de lábios roxos e pintas na pele. Do outro lado da rua, aquela mulher de cataporas mantinha a ordem que eu não encontrava para mim. Jamais pendurei roupas no varal exposto; recuso-me a dar esta risível alegria aos passantes, quanto mais aos turistas que nos invadem.
O chapéu de feltro verde italiano aquece-me a calva e permite com que me sinta incógnito nesta quadra de mundo onde sinto que me conhecem por onde passo, há observadores nas esquinas. Portanto, o chapéu me permitia essa sensação de disfarce e sobriedade. Flanava tranquilo até que os sopros principiaram aterrorizar-me, assobios com vozes estrangeiras e zapt, voava-me o chapéu. Abateu-me a sensação de Akaki ao ser subtraído do capote. Em sobressaltos, estiquei os braços para alcançar o chapéu que me escapava, o único objeto que intercedia entre eu e o mundo exterior, sem ele eu não me atreveria às ruas. O chapéu subia como a pipa do menino afegão ou um balão prateado enchido de hélio. Nenhum dos passantes percebia o que me sucedia, vi-me completamente só na tentativa de resgatar o chapéu fugitivo. A ventania jogava outros objetos no ar mas eu mantinha os olhos fixos no que me pertencia. Por fim, o chapéu iniciou um processo de queda e aterrissou sobre a faixa de trânsito no meio da Avenida de Marte. Os carros, sem que as feições de seus motoristas se deixassem capturar, interromperam o movimento e permitiram que eu atravessasse o percurso sem arriscar atropelamento. Abaixei-me com a humildade de um escravo de Deus, firme no intento bíblico e encaixei o chapéu na cabeça como um soldado de guerra. A minha testa em calafrios. Daquele momento em diante, o chapéu resgatado transformara-se em um capacete e eu abotoo os botões que me restam na camisa nos dois sentidos, o homem que deixa de sonhar desenvolve uma singular intimidade consigo.
Kátia Bandeira de Mello-Gerlach, natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law, e professora de Direito na Fundação Getúlio Vargas. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique Villa-Matas. Participação no Disquiet International Program em Lisboa através de estipêndio pela Fundação Luso-Americana, FLAD. Agraciada pelo programa da New York Foundation for the Arts, Artes Literárias. Publica no Jornal Rascunho e na Revista Cenas (Centro Cultural Raimundo Carrero). Colunista da Philos – Revista de Literatura da União Latina. Colisões BESTIAIS (Particula)res pela Editora Oitoemeio (Rio de Janeiro) é o seu terceiro livro de contos. Antes, publicou Forrageiras de Jade (2009) e Forasteiros (2013), editados pelo Projeto Dulcineia Catadora. Lançou Jogos (Ben)ditos e Folias (Mal)ditas pela Editora Oito e Meio oficialmente na Flipoços em Maio de 2017.
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