“Escrever
é
abrir-se
às
contaminações
do sol
ao risco”
Igor Fagundes
por Luiz Otávio Oliani
Igor Fagundes é um nome que sabe a que veio. Reinventa-se a cada livro publicado. Algumas de suas características são: a polivalência, o sincretismo, a intertextualidade e a interdisciplinaridade, ou seja, o diálogo da poesia com várias formas de expressão; o que se deve à formação como jornalista e como ator, com passagem discreta pelo teatro como diretor e dramaturgo, e ao fato de ter cursado mestrado e doutorado em Poética, na ampla reunião das Artes com a Filosofia. A partir de então, chegou a ser docente da Faculdade de Letras da UFRJ. Posteriormente, veio a lecionar nos cursos de graduação em Dança da mesma universidade, fazendo-se docente e pesquisador do Departamento de Arte Corporal no setor de Filosofia, Estética e Teorias da Dança. Por isso, Igor Fagundes é um caldeirão cultural, no qual há espaço para a arte em toda sua essência, aglutinando mais do que nunca a comunhão entre o corpo, a voz, a dança e a palavra.
Quanto à estrutura de pensamento dança (Penalux, 2018), é importante observar que obra possui na quartacapa comentários de Antonio Carlos Secchin, Astrid Cabral, Marcos Pasche e Tanussi Cardoso. Trata-se de intelectuais de primeira monta, os quais dispensam apresentações. Todos são unânimes em valorizar a grandeza da poesia de Igor Fagundes. Já o prefácio é assinado por outro nome do mesmo naipe: Marcus Vinicius Quiroga, que acentua, na página 18, que “pensamento dança é mais um livro de Igor Fagundes a que recorreremos, sempre que quisermos uma leitura exigente e uma escrita inteligente, capaz de renovar-nos como leitores e provocar-nos como escritores”.
O livro é dividido em três partes. Em “Ensaio” ou “quase ensaio, não fosse a prosa de um poema”, nota-se que o autor se vale de uma prosa poética para conclamar os leitores para uma “dança a se pensar num pensar que dance”, já que “lutar para que a dança não se perca” é fundamental, por ser ela “pensamento e um modo de ser, em sua prática, a originária teoria”. Em “Estreia”, há 72 poemas inéditos. Já a terceira parte, “Reestreia”, traz 27 poemas já publicados em livros anteriores, mas parcialmente alterados, perfazendo um total de 99 textos literários. Para fins de estudo, o enfoque recai aqui na parte segunda do volume em voga.
Sendo Igor Fagundes um amante do conhecimento, “pensamento dança”, o seu nono livro solo, rende homenagens a diversas personagens da história da dança ocidental, dentre as quais Pina Bausch, Isadora Duncan, Rudolf Laban, Merce Cunningham e Vaslav Nijinsky. Daí, incorre-se numa reflexão: o homem primevo das eras rupestres, com inscrições nas cavernas, já desenhava o contorno dos corpos, bailando no ar? Já se tratava de poesia enquanto manifestação do espírito, no que estava ali pintado nas paredes? Igor traz, portanto, tal comunhão neste novo trabalho literário.
A começar pelo título do livro, nota-se certa dubiedade ou ambiguidade certamente proposital. A ausência do artigo definido “o” antes do substantivo abstrato “pensamento” deixa uma dúvida no ar: o título é composto de dois substantivos? O vocábulo “dança” sofreu a síncope do artigo? Seriam os termos do título dois substantivos apenas? Ou, em segunda leitura, seria o pensamento que dança mesmo? O vocábulo “dança” remete a um verbo de ação?
A genialidade do autor está no próprio corpo dos textos da obra. Igor é um poeta, como já foi dito, que ama o conhecimento. E, mesmo num livro sobre a dança e sua relação com outras artes, aventura-se no universo das ciências. Em “Dynamis” (p.43), a Biologia e a Física passeiam pelo campo semântico do poema, no qual há um canto à deusa Dinâmica, notadamente marcada por termos como “cabo de aço”, “força”, “partícula”, “roldana”, “polia”, “mecânica”, ”ondas”, a conviverem com “adenosina trifosfato”, “fibrocartilagens”, “vértebras”, “células”, “matéria”, “sinapses”, “átomo”, entre outras. Assim, as mitocôndrias que alimentam a respiração de Igor não o cansam. Os alvéolos me param e a poesia se materializa em “tempo-ritmo”, “espaço-forma” e “movimento” como demais fatores para a dança.
As aliterações nos versos do poema citado, “válvulas de vagas vozes / vazadas na aorta”, lembram o clássico “Violões que choram” do simbolista Cruz e Sousa. E, por falar em intertextualidade, a leitura de um poeta como Igor Fagundes traz imenso prazer aos amantes da literatura que, ao reconhecerem em seu corpo, vozes e águas de outros autores que o antecederam, percebem a grande inventividade de um autor que conhece a fundo a matéria sobre a qual escreve. O poema “educação pela dança” (p. 25) revela tal diálogo com o clássico do modernista João Cabral de Melo Neto, em “a educação pela pedra”, ressalvados alguns intertextos de Melo Neto no interior do próprio texto, estando os poetas numa mesma teia literária, a qual ainda entretece Drummond, Manoel de Barros, Guimarães Rosa e Homero.
Já o poema “tabela periódica” (p. 124), poema todo constituído por belos decassílabos, bebe do campo vocabular da Química para tratar de um relacionamento amoroso, como se nota no verso: “na busca básica por uma química / entre dois corpos que não sejam ferro”. Aqui, o poema demonstra também o interesse do poeta em trabalhar com a musicalidade por meio de rimas como “festim e “mim”, “sódio” e “óbito”, entre muitas outras.
Riquíssima é, portanto, a poesia de Igor Fagundes, ao se valer também de uma intertextualidade com o Evangelho de João, no Gênesis. Ao se fazer arcaicamente “contemporâneo” (p. 87), diz o poeta: “No princípio era / somente a promessa / de algum desvario / no conceito e na regra / rumo ao deleite /de genuínas poéticas”. E há, também, como já demonstrado, a interdisciplinaridade. Isso porque o poeta rompe com a ideia da poesia fechada em si mesma: vai além e a aproxima de vários campos do saber.
O poema “habeas corpus” (p. 98) traz, em seu título, agora a linguagem jurídica, a fim de mostrar um paradoxo: “meu poema é teórico/ meu ensaio é poético”. E, ao fechá-lo ricamente, dita “nenhuma sentença / para os crimes supostos / de um poema // a menos que ele tenha / um habeas corpus / para sempre como pena”.
Além do título pensamento dança, na capa do livro a arte também pulsa em fotografia e em explosão. Um poema nasceu para homenagear o artista Julius Mack, seu aluno, tornado posteriormente modelo para a capa por meio de uma foto de Derick Abreu. Eis a comunhão entre corpo-palavra-dança também no poema que leva seu nome: “Em Julius / delicadamente o que for / denominado óbito / ganha a flor, o epitáfio / e a vela / até que em dança/ ressuscite o amor / por cada coisa que/alada / também pesa” (pp. 119-121). Há homenagens por todo o livro, como no poema “março” (p.135), com loas à carioca Marielle Franco, vereadora e defensora dos direitos humanos, brutalmente assassinada em 14 de março de 2018.
E, por tratar de violência, a crítica social do livro está também em “samba para os três poderes” (p. 137) e em “poesia” (p.141), pois alega o eu lírico que “nunca mais se ouviu o uirapuru /mas eu voltei / com notas mais agudas / em meu canto desmatado / e solto em selvas amazônicas / com sede de vingança / contra a sanha branca / de ver índio assassinado”.
O social, a crítica ao passado escravocrata e ao pós-abolicionismo estão em “dança da guerra” e em “quilombola” (p. 73),quando “as etnias / dançam por Zumbi / e demais antepassados / nas senzalas de hoje ainda / percutidas nos gemidos cavos / de atabaques vindos / de um Palmares que dispare / o grito de seus filhos / contra a rosa idolatrada / sem o espinho”.
Em “matéria de dança” (p. 46), todo o poema lembra um texto do poeta Manoel de Barros. E se “O que é bom para o giro é bom para a dança”, nota-se a preferência por aquilo que se move, mas também pelo estático, pois também se lê que: “As coisas mais estáticas / têm grande importância:/por exemplo uma cadeira / tomada de traças / que dançam/a morte da madeira”. Cabe, ainda, um tempo para a celebração da diversidade das formas de amor, em passagem homoafetiva quando revela que serve à dança uma “criança / ao longe / assistindo / sem pânico / ao amor / entre dois homens”.
Assim, a poesia de Igor Fagundes se insere num ritmo muito peculiar. O poema “nem que a página tussa” (p.131) basta para representar um pouco o estilo do autor. Trata-se de soneto dodecassílabo marcado por jogos sonoros e intensa carga metafórica, com abordagem original sobre tema complexo. Ali, o eu lírico ganha o leitor pelo humor ante a saúde do poeta e do texto, ao expor que “Primeiro tapa recebi quando nasci /e foi na bunda, aprenderia com meu médico/ que são filhos da puta todos os remédios”. Urge ainda dizer que, ao seguir uma métrica rígida, Igor Fagundes o faz por opção, porque sabe muito bem transitar pelo verso livre, ao estilo dos modernos, com um ritmo também único e marcado, como atesta, entre outros, o poema “kairós” (p.52).
Uma lição de otimismo aparece no poema “quem” (p.48) quando se afirma que “não há um corpo /apto/ ou não apto / a dançar”, citando o eu lírico o exemplo de um “cadeirante ignoto / dos limites / e aquele sujeito / a quem sempre dizem / que o Sem Jeito / mandou lembranças”. Ou seja, todo o poema é um convite a que as pessoas dancem. Afinal, “apenas não dança/ quem recusa / na cintura / o tsunami / da existência”.
Em “vernáculo” (p.54), o processo físico-químico-biológico na construção do poema e do sistema digestório reaparece na poesia de Fagundes, por intermédio de um viés metalinguístico. Por meio de um jogo de prosopopeias e aliterações, “Os dezessete músculos/ da língua/ deglutem vultos”, isso porque a voz vem “de sílabas que dentro/ sibilam semânticas / tremendo o palato”, em fantásticas aliterações sibilantes. O chiado surge justamente das cordas vocais num “mundo afora dos calos / dos significados literais”. Até a entrega da gengiva ao sangue e à saliva, com a presença do fonema velar / g /, um ar cômico fecha o texto quando algum gramático “geme / quatro sisos /de sintaxe”.
Em “biografia (remake)” (p.37), há um poeta em dicotomia ou contradição com o ensaísta, como se fosse possível separar um do outro, tal qual “um contraste só estar o artista” imerso na unidade de tal paradoxo: “escravo de uma rima ou de uma métrica / enquanto um outro eu (grifo meu),mais acadêmico / vencendo o porre de suas normas técnicas / faz de um artigo uísque goela adentro”.
No poema “pronome pessoal do caso feminino” (p.59), eis um paralelismo criado não com o objetivo da ênfase gratuita (Igor Fagundes sabe o que fazer e faz bem!), mas para mostrar aos leitores todos os tipos de dança, seja para esquecer a ferida ou pela celebração da alegria: “dançar / para que haja / um porquê /a sorte/ de um quando // e um para onde”. Trata-se de um poema que mostra a importância do dançar para mulheres vítimas de toda a sorte, através da violência doméstica e do machismo. Para elas, a dança aparece como resistência, libertação, salvação ou terapia. Frise-se, aqui, que o mesmo recurso do paralelismo também se encontra no poema “salvar-se” (p. 62).
As dificuldades do movimentar o corpo e dançar estão em “trincheira” (p. 60), tendo em vista um tempo difícil porque de guerras, dores diversas e um “chão de pólvoras”. Soma-se a isso a propositura de um dançar independente de um “gênero de dança” em “a palavra dança” (p. 68); a dança como ritual étnico de guerra e festejo em “dança de guerra” (p. 77); a dança dos que já partiram e ainda se movem, como se vivos, em “meus mortos vêm dançar” (p. 79); nada escapa às lentes de Igor Fagundes.
No poema “gabarito” (p.100), genial é a construção do texto, como se a chave dele fosse o gabarito de uma prova de múltipla escolha, ou seja, a resposta para uma pergunta. Por meio de paralelismos sintáticos, orquestrados como dança sinuosa no bailado da página, a reflexão sobre o “não é” encanta os leitores. Em sete estrofes, a quebra de expectativa se dá nas duas últimas estrofes, porque, revelada a pergunta da “prova” e a “resposta a negar-se”, afirma-se “Deus às vezes é / a dúvida incisiva / ou a absoluta fé/ em toda pergunta / que se exclama / e se extravia / em eco ou na surdina / sem haver a substância / de um sílaba /a sangrar/ numa prova a discursiva/ o seu enigma// Deus não é / nenhuma/ das respostas acima”.
Já em “tuareg” (p 113), nota-se um eu lírico com um desejo inusitado: dançar de forma que o ato de se mover represente uma liberdade múltipla; uma forma de exercer a felicidade antes da morte já anunciada. “Avisado que morreria / pediu ao câncer/ como alforria/ uma última dança / no meio do trânsito/ da Avenida / Rio Branco”, isso porque com “uma artimanha de passos / urdidos como biópsias / livres de metástases”, a dança seria a “chance de fuga / (…) / com sede de música”.
Em “cabimento” (p.117), eis não o poder da ironia, mas a possibilidade de usar a linguagem para dizer algo contrário ao imaginado. Com inteligência ao escrever que “A impossibilidade / de dizer /já é /possibilidade /de dizer”, Igor brinda os leitores com um desafio: “Experimente agora/escrever dança /dentro de um fonema //e me diga se dançar /não cabe no poema”.
Embora jovem, Igor Fagundes brinca, em “dez comprimidos” (p.132), com o fluir dos anos, a finitude e a medicalização da existência, porque “Aos quarenta / a morte será mesmo / o maior tema do poema”.
Em suma, seja dançando, seja lendo, seja ouvindo Igor Fagundes a dizer seus poemas em espetáculos e saraus, vale a pena seguir seu bailado no corpo das palavras, “pudesse a dança ser o poema absoluto// e fosse o poema a dança oculta de uma fala / por baixo do silêncio / acima dos murmúrios/ de um pássaro a voar além do que traduzo”.
*Luiz Otávio Oliani é professor e escritor. Em 2017, a convite da escritora e ativista cultural Mariza Sorriso, integrou a equipe de poetas que representou o Brasil no IV ENCONTRO DE POETAS DA LÍNGUA PORTUGUESA, em Lisboa, Portugal. Publicou 13 livros, sendo 10 de poemas e 3 peças de teatro. O título mais recente é: “Palimpsestos, Outras Vozes e Águas”, Penalux, 2018.
Pensamento dança é um livro que jamais retornará à estante sem que tenha sido lido até o fim. Por diversas vezes, durante a leitura, fui instada a reler alguns textos, na expectativa de apreender todo o seu conteúdo filosófico e, com efeito, detalhes importantes foram percebidos e acrescentados. É um livro que recomendo aos leitores sequiosos por ampliar seus conhecimentos e certamente não será o último que o autor irá produzir.