FERNANDO ANDRADE – Vi no seu livro um dos livros mais pulsionais já escritos recentemente. Você traz a pulsão criativa, literária, da ficção, para um formato onde a priori parece racional: o diário, pois ao falar de si parece que há inúmeros anteparos lógicos de blindagem. Como foi usar a ficção dos outros para falar de si?
FELIPE CHARBEL– A forma do livro veio por acaso, quase como uma brincadeira. Um amigo, o Antonio Marcos, me convidou para escrever um ensaio sobre Roberto Bolaño. Perdi o prazo, em parte porque não me julgava em condições de escrever sobre Bolaño, mas também porque passava por um bloqueio e estava infeliz com algumas escolhas profissionais. O Antonio tinha consciência de que eu mantinha um caderno, e sabia que para o diário não existia o tal bloqueio criativo. Daí a sugestão: escreva um ensaio em forma de diário, o que te impede? Foi o que fiz. Logo o ensaio foi ganhando contornos de narrativa, e as releituras iam me conduzindo ao meu passado, às circunstâncias e aos ambientes das primeiras leituras desses livros.
FERNANDO ANDRADE – O discurso dialógico com escritores que lidam com aspectos humanos da sexualidade – Roth, em Delillo a relação algoz com o entorno (em fases ou formas paranoicas) – é muito bem cruzado com seu traçado como crítico e escritor. Como foi esse trabalho, imagino manual, artefato afetivo, de fazer estas pontes, encruzilhadas entre personagens dos autores e sua experiência biográfica?
FELIPE CHARBEL – A ideia era ter um caderno só para essas releituras, o que envolve trabalho manual, e também um certo grau de fetichismo: escolher a melhor caneta, um papel que não borra etc. Só por isso já era um outro estímulo, porque quando escrevo ensaios ou resenhas uso direto o computador, e tento ser objetivo. Com as entradas do diário o tempo era totalmente outro: elas acompanhavam o ritmo da releitura, os humores do dia, e aos poucos percebi que me importava bem mais com a sequência da leitura e com a humanidade dos personagens do que com as sínteses que eu esboçava para fazer uma resenha. No começo do processo não tinha ideia de que seria assim. Mas a escrita tem essa deriva própria, e fui me dando conta de que as releituras me conduziam a histórias mal resolvidas do meu passado, e também percebi que só era capaz de enxergar essas dificuldades quando me observava como que de fora, do mesmo jeito que faria com um personagem inventado.
FERNANDO ANDRADE – A escrita me parece um ato de apagamento de si, o narrador precisa se esconder da verdade do eu, criar mentiras-mitos. Mas no amor, não seria o contrário? Um enovelar-se sobre o outro quase como uma trepadeira, ( a árvore) Como associar ou dissociar estas duas formas de estar no mundo? São incongruentes o amor e a escrita?
FELIPE CHARBEL – Não acho que sejam incongruentes. O amor, nas suas várias formas, é um dos materiais mais antigos da escrita: as cartas de amantes, os tratados filosóficos, o romance de aventuras, a poesia lírica. No amor romântico tudo é mitologia, mentiras que contamos a nós mesmos, verdades que não podem vir à tona – não deixa de ser uma forma de ficção em que nos enredamos pelo menos uma vez na vida.
FERNANDO ANDRADE – A narrativa como um castelo sobre a lealdade da amizade. Ficção e amizade me parecem dois elos fortes sobre pertencimento. O que você acha?
FELIPE CHARBEL – A amizade é um tema que me interessa, e que gostaria de ter explorado mais no livro. É que todas essas leituras impactantes que descrevo ali foram motivadas por conversas com amigos, ou por fóruns de discussão de literatura contemporânea nos primórdios da internet. Desses fóruns surgiram algumas das minhas amizades mais duradouras, e isso me faz pensar na importância, para o fortalecimento de uma amizade, dessas formas variadas de convergência de afetos. Por exemplo, em torno da maneira como amamos ou odiamos histórias inventadas por outras pessoas. Ou como criamos apreço pelo objeto livro.
FERNANDO ANDRADE – E para fechar nosso papo quando a crítica literária é um ato de amor?
FELIPE CHARBEL – A frase é do George Steiner, ou pelo menos é adaptada do Steiner. Ele fala que “a crítica literária deve brotar como uma dívida de amor”, mas por alguma razão excluí do livro essa parte da dívida. Foi um lapso mesmo, ou um erro de transcrição. Que talvez queria dizer alguma coisa, por exemplo que a crítica para mim só é um ato de amor quando se vincula a alguma forma de prazer: o prazer da leitura, o prazer do conhecimento, o prazer de apresentar uma nova maneira de ler um autor, o prazer da argumentação.
FERNANDO ANDRADE jornalista, poeta e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemometria, e Enclave (poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018 o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie, Editora Penalux.
Amei a entrevista. Parabéns, ao Felipe, pelas deliciosas respostas. Leves, sem ficar no superfícial, sem deixar de acrescentar conhecimento ao leitor. Parabéns, pela abordagem inteligentíssima!
Ivy